
Grande vencedor do 46º Festival de Cinema de Gramado, Ferrugem está na lista dos filmes que disputam a vaga para representar o Brasil na corrida pelo Oscar de melhor filme estrangeiro.
10 SEGUNDOS PARA VENCER (idem, 2018, de José Alvarenga Jr.): Cinebiografia do boxeador brasileiro Éder Jofre, 10 Segundos Para Vencer é o primeiro longa-metragem abertamente dramático assinado por José Alvarenga Jr., que fez carreira dirigindo comédias mais populares e de expressivas bilheterias, como Divã, Os Normais, Cilada.com e vários títulos dos Trapalhões entre os anos 1980 e 1990. Para essa nova investida, ele optou por um formato seguro e já consolidado nas biografias produzidas pelo cinema brasileiro, onde a história, que transita pelo clássico arco dramático de apogeu, decadência e reerguimento, tem início, meio e fim muito bem definidos, sem nada muito novo em forma ou estrutura. O que dá mesmo força ao projeto é a leitura do esporte como uma ferramenta de interação humana, e não como mero exercício físico ou passatempo: para Éder Jofre, lutar era uma missão de vida e também o que lhe conectava com um pai rígido, exigente e que esperava do filho uma trajetória gloriosa dentro e fora dos ringues. Talvez a escolha por esse olhar mais íntimo e familiar do personagem explique a leitura um tanto insuficiente que 10 Segundos Para Vencer faz do ícone Éder Jofre, poucas vezes devidamente dimensionado como uma mítica figura do cenário esportivo brasileiro. Por ser muito mais sobre laços e ruídos afetivos entre pai e filho, o roteiro abre as portas para que Daniel Oliveira, em plena entrega física, crie uma ótima química com o grande Osmar Prado, aqui em desempenho marcante, buscando todo tipo de humanidade e complexidade em um sujeito que, treinador do próprio filho, dificilmente encontra o equilíbrio saudável entre o seu papel de pai e a sua missão como uma incansável líderança do boxe. Organicamente, Osmar toma conta do filme, ao mesmo tempo em que há generosidade de sobra em sua dinâmica com os outros atores em cena. Não há o que quesionar: o nocaute de 10 Segundos Para Vencer é dele.
O AVENTAL ROSA (idem, 2018, de Jayme Monjardim): Apresentado pelo próprio Jayme Monjardim como o seu primeiro trabalho mais autoral depois de super produções realizadas para o cinema e para TV, O Avental Rosa é uma homenagem ao trabalho solidário e dedicado de pessoas que cuidam de pacientes terminais, tema sempre muito delicado por ser suscetível ao discurso fácil e à panfletagem. Ao preservar muito da linguagem televisiva que tanto consagrou Monjardim na televisão, o filme se desenrola basicamente como uma novela compactada em duas horas de projeção. São pouquíssimos os traços verdadeiramente cinematográficos na tela, começando pelo roteiro, recheado de lições de moral, coincidências e diálogos redundantes, onde são explicados conflitos e questionamentos que já estavam claríssimos através das atitudes de cada personagem. E mais: com um tom fortíssimo de melodrama e de auto-ajuda, o diretor reproduz diversos cacoetes reconhecidos da TV, como quando a protagonista, atormentada pelas discussões de um dia conturbadíssimo emocionalmente, não consegue dormir e se revira na cama com flashbacks e ecos das frases que lhe foram ditas. Na estética, a lógica se repete, pois, quando ganha um creme para a pele de presente, Alicia (Cyria Coentro) passa longos minutos caminhando pela casa e passando o produto lentamente na pele, como se estivesse em um comercial de cosméticos. Com uma grande escala de orçamento, como aconteceu em Olga, é possível maquiar bastante coisa. Já em um filme menor e mais intimista como proposto aqui, as fragilidades emergem de forma mais evidente. Por isso mesmo, conclui-se que O Avental Rosa é feito para o público adepto e afeito à linguagem televisiva. Como desde 2012 não assisto à uma novela sequer (e a última foi Avenida Brasil, que era mais sofisticada do que a média apresentada em horário nobre), não consegui estabelecer qualquer conexão com o longa.
A CIDADE DOS PIRATAS (idem, 2018, de Otto Guerra): A animação A Cidade dos Piratas é tão divertidamente caótica quanto o próprio diretor Otto Guerra, além de ser uma fidelíssima alegoria sobre os nossos tempos, ainda que essa seja apenas uma coincidência do roteiro, que começou a ser escrito em 2001. À parte as questões políticas e sociais tão reivindicadas pelo diretor dentro e fora de seus trabalhos, o filme propõe uma interessante metalinguagem ao colocar o próprio Otto dentro da história: tudo começa quando ele se vê em plena crise existencial e artística após a descoberta de um câncer e de que Laerte, autora dos quadrinhos em que o filme se baseia, de repente passou a renegar os seus próprios personagens. São fatos que realmente aconteceram e que, nos bastidores, bagunçaram por completo a ideia do projeto, algo que Otto viu como uma irresistível oportunidade, incorporando muitos dos acontecimentos na tela. No bom sentido da comparação, isso faz de A Cidade dos Piratas o trabalho mais maluco já assinado pelo animador gaúcho: com personagens improváveis, inúmeras liberdades, humor afiado e, por que não, uma imensa dose de realismo no meio disso tudo, o longa coloca o espectador em terrenos incertos e imprevisíveis, provocando reações que, para o bem ou para o mal, podem ser medidas conforme o gosto de cada um pelo já reconhecido estilo do animador. No raríssimo terreno de animações brasileiras para adultos, A Cidade dos Piratas nos lembra o quanto Otto continua sendo uma figura única e provocadora, que conta uma história como bem entende, sem estar preso a regras ou domesticações, qualidade celebrada pontualmente pelo 46º Festival de Cinema de Gramado com uma menção honrosa entregue ao filme pelo júri oficial.
FERRUGEM (idem, 2018, de Aly Muritiba): Com as redes sociais tomando conta do nosso cotidiano e da maneira com que nos relacionamos com outras pessoas e inclusive com nós próprios, é muito lógico que o cinema também passe a refletir sobre esse delicado momento geracional. O Brasil, claro, faz parte dessa safra: depois do recente Aos Teus Olhos, agora temos Ferrugem, o grande vencedor do 46º Festival de Cinema de Gramado com os Kikitos de melhor filme, roteiro e direção. Menos verbal e expositivo do que os retratos desse tema costumam ser (e do que vimos em Aos Teus Olhos, por exemplo), o filme de Aly Muritiba levanta suas discussões a partir de perspectivas bastante distintas. A primeira é a de uma garota que, após ter um vídeo íntimo vazado na internet, passa a viver um verdadeiro pesadelo no colégio. A segunda é a de um menino que, por razões um tanto nebulosas, lida muito mal como um observador de todo aquele caos. É corajosa e inesperada a virada que Ferrugem dá na metade da projeção para inverter o foco da narrativa. Todo ato tem uma consequência, e é radiografando a reverberação da culpa, seja ela íntima ou coletiva, que a história ganha uma atmosfera diferenciada para discussões que estão em voga e que ainda serão exploradas de tantas outras maneiras semelhantes no cinema. Ferrugem não é um filme para o público jovem no sentido de ser uma experiência catártica ou embalada comercialmente para esse tipo de público. Pelo contrário: contemplativo, o projeto é muito mais sobre comportamentos do que sobre acontecimentos, tornando-se até um tanto anti-climático dependendo das expectativas, principalmente na segunda parte, muito bem defendida pela ótima performance do jovem Giovanni Di Lorenzo, mesmo que seu personagem não seja o tipo de persona que desperte empatia no espectador. Ferrugem não chega a ser um grande filme, mas as importantes reticências deixadas por ele quanto ao que nos tornamos frente a movimentos tecnológicos ou geracionais colocam o resultado em um patamar no mínimo diferenciado.
Ri da pseudo sofisticação de Avenida Brasil.
Como você não assiste mais novelas, não verá Um Lugar ao Sol, aquilo é sofisticação.