A Forma da Água

Unable to perceive the shape of you, I find you all around me.

Direção: Guillermo Del Toro

Roteiro: Guillermo Del Toro e Vanessa Taylor

Elenco: Sally Hawkins, Michael Shannon, Richard Jenkins, Octavia Spencer, Michael Stuhlbarg, Doug Jones, David Hewlett, Nick Searcy, Stewart Arnott, Nigel Bennett, Lauren Lee Smith, Martin Roach

The Shape of Water, EUA, 2017, Drama, 123 minutos

Sinopse: Década de 60. Em meio aos grandes conflitos políticos e transformações sociais dos Estados Unidos da Guerra Fria, a muda Elisa (Sally Hawkins), zeladora em um laboratório experimental secreto do governo, se afeiçoa a uma criatura fantástica mantida presa e maltratada no local. Para executar um arriscado e apaixonado resgate ela recorre ao melhor amigo Giles (Richard Jenkins) e à colega de turno Zelda (Octavia Spencer). (Adoro Cinema)

Para o completo pavor de Donald Trump, não há país de língua latina que tenha conquistado mais os Estados Unidos nos últimos anos do que o México. Começou com Alfonso Cuarón, que, muito antes de ganhar sete Oscars com Gravidade, incluindo o de melhor direção, já havia assinado o melhor capítulo de uma das franquias mais lucrativas de todos os tempos: Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban. Trajetória semelhante teve, logo em seguida, Alejandro González Iñárritu, que também faturou o Oscar de melhor direção, dessa vez por dois anos consecutivos (BirdmanO Regresso) e que já tinha noção de como era ser abraçado pelos membros da Academia com suas múltiplas indicações por Amores BrutosBabelBiutiful. E todos nós sabíamos que era questão de tempo para Guillermo Del Toro, amicíssimo de Cuarón e Iñárritu, chegar ao topo de sua relação com os norte-americanos (as únicas honrarias destinadas a um filme seu foram Oscars técnicos por O Labirinto do Fauno). O desafio de Del Toro, entretanto, era muito maior: apesar de encher incontáveis cinemas para se divertir com filmes de monstros, Hollywood tem uma dificuldade tremenda de levá-los a sério. Apaixonado por todo tipo de estranha criatura, o diretor precisava, de certa maneira, quebrar esse paradigma. E aí vem a linda notícia: com A Forma da Água, o recordista de indicações ao Oscar 2018 (são treze, ao total), ele chegou lá. E mais: repetindo os passos de Cuarón e Inãrritu, que também precisaram fazer filmes falados em inglês para serem reconhecidos apesar da longa trajetória em língua latina, mas que navegaram nessa transposição preservando todo o talento que, lá atrás, antes de qualquer prêmio, firmou cada um deles como os grandes realizadores que sempre foram.

Mais uma vez renegando as ideias comerciais, infantilizadas e enraizadas em filmes de cunho fantástico para mostrar ao espectador como é possível — e natural — discutir o ser humano através da fantasia, Del Toro faz de A Forma da Água um filme bonito por si só, mas que, não podemos negar, ganha sentido mais apurado frente ao mundo em que vivemos (tendência cada vez mais forte em uma boa parcela de produções ao redor do mundo, afinal, filmes também são, de um jeito ou de outro, registros de seus respectivos tempos). Basicamente, a trama principal acompanha uma faxineira muda que se apaixona por um monstro capturado por um laboratório. Quem chega perto de compreendê-la são apenas dois de seus amigos próximos: o vizinho gay e a colega negra. Vejam só a composição abertamente crítica e contemporânea: o bem, representado por esse trio de “minorias”, trava sua batalha contra o mal, aqui visto sob uma perspectiva facilmente reconhecível: a do chefe homem, autoritário, branco, engravatado, intolerante e atolado em preconceitos. A Forma da Água, claro, nos conduz para reflexões impossíveis de serem ignoradas em uma história como essa, como a ideia de que a folclórica monstruosidade que o cinema tanto nos ensinou a temer em criaturas estranhas é, na maioria das vezes, coisa coisa somente do ser humano. E já que o filme decide contar tudo isso em tom de fábula, quase como se fosse uma encantadora e envolvente animação, tais conotações ganham uma força ainda maior, pois poucas coisas mexem tanto com a gente quanto os sonhos e a assustadora ameaça de que eles podem ser destruídos inclusive por quem, em tese, deveria ser nosso semelhante.

Em ideias e conceito, A Forma da Água é muitíssimo bem resolvido, e todo o espetáculo visual proporcionado pelo filme ajuda a corroborar essa afirmação. É impossível não se impressionar com a trilha do prolífero Alexandre Desplat, que entrega um dos seus melhores trabalhos tanto pela identidade criada para a saga da protagonista Elisa (Sally Hawkins) quanto pela discrição ao narrar uma história sem ser invasivo ou explicativo. Não deixe escapar também o impressionante design de produção assinado por Paul D. Austerberry: ele é capaz de, através de lindas e sutis composições, criar encantamento e proximidade mesmo em ambientes desgastados pelo tempo e pelo descuido, como o próprio edifício onde mora a nossa heroína. Mais: completando a grande contribuição técnica para os sentidos, a fotografia de Dan Laustsen transita entre a inocência de Elisa e a vilania do chefe Strickland (Michael Shannon) com igual apuro e imponência. Del Toro captura tão bem essa composição que saímos da sessão com a certeza de que esse universo sempre esteve muito vivo em sua cabeça. Sensação semelhante é traduzida pelo ótimo: Richard Jenkins, o eterno Nathaniel Fisher do seriado Six Feet Under, e Octavia Spencer, agora distante das caricaturas de Histórias Cruzadas para se tornar uma atriz cada vez mais espontânea, estão ótimos como coadjuvantes de Sally Hawkins, uma atriz de talento singular que surpreende não pela destreza técnica ao dar vida a uma mulher que só comunica através de LIBRAS, mas por fazer emergir, com extrema delicadeza, os sentimentos antes negados e agora descobertos por essa mulher que sempre foi julgada por sua deficiência física. Hawkins brilha em cada cena de A Forma da Água, nada menos do que isso.

E como o assunto é elenco, chegamos a quem quase coloca a perder todo esse vitorioso universo: Michael Shannon. É um pouco chocante fazer essa constatação porque Shannon é ator dos grandes e porque é um tremenda decepção vê-lo fora de tom como aqui. Culpa exclusivamente dele? Jamais. Shannon perde sim a mão ao entrar até demais no overacting exigido para clássico um vilão de conto-de-fadas, mas com uma grande ajuda do roteiro, que se dedica em excesso a esse antagonista que não chega perto de causar um décimo do interesse que qualquer outro personagem do filme desperta. Para justificar tanta atenção, vilões precisam ser fascinantes em suas ambições e medidas descabidas, mas aqui Strickland é aquele tipo de figura que você não deseja conhecer e você quer apenas que ele logo caia fora de cena. Não ajuda o roteiro tratá-lo como um mero obstáculo na vida da protagonista, abordagem que torna suas cenas simplórias, repetitivas e responsáveis por quebrar o ritmo e o encantamento construídos com tanto talento paralelamente. Submerso em doses de doçura consideravelmente maiores se comparadas a outras de suas obras (mesmo protagonizado por uma criança, O Labirinto do Fauno, por exemplo, era uma obra dura e trágica), Del Toro sofistica muito mais a luz no fim do túnel do que as trevas no meio do caminho. A Forma da Água não perde sua beleza em função disso, mas, sem dúvida, deixa escapar, por pura bobeira, a chance de ser o longa irretocável que, em diversos momentos, chegou muito perto de ser.

5 comentários em “A Forma da Água

  1. Pingback: No calor do momento, o que podemos concluir sobre o Oscar de “Melhor Filme Popular”? | Cinema e Argumento

  2. Matheus, concordo com sua observação sobre a atuação de Michael Shannon. Aqui, acho que ele foi caricatural demais, forçando alguns trejeitos desnecessários.

    Em relação ao filme, achei “A Forma da Água” de uma beleza sem igual. A parte técnica foi toda feita com muito cuidado e esmero. Acredito que o filme, ao final, nos relembra de que o amor não tem forma; fala sobre pessoas que vivem à margem, mas acabam encontrando aceitação em meio a eles mesmos. Enfim, é o meu filme favorito, até agora, da safra do Oscar 2018.

    • Kamila, também acho “A Forma da Água” de uma beleza sem igual… Só é uma pena que Michael Shannon atrapalhe boa parte do filme. É o meu segundo favorito na disputa pelo Oscar!

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