O Estranho Que Nós Amamos

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Direção: Sofia Coppola

Roteiro: Sofia Coppola

Elenco: Nicole Kidman, Kirsten Dunst, Elle Fanning, Colin Farrell, Oona Laurence, Angourie Rice, Addison Riecke, Emma Howard, Wayne Pére, Matt Story, Joel Albin

The Beguiled, EUA, 2017, Drama, 93 minutos

Sinopse: Virginia, 1864, três anos após o início da Guerra Civil. John McBurney (Colin Farrell) é um cabo da União que, ferido em combate, é encontrado em um bosque pela jovem Amy (Oona Laurence). Ela o leva para a casa onde mora, um internato de mulheres gerenciado por Martha Farnsworth (Nicole Kidman). Lá, elas decidem cuidá-lo para que, após se recuperar, seja entregue às autoridades. Só que, aos poucos, cada uma delas demonstra interesses e desejos pelo homem da casa, especialmente Edwina (Kirsten Dunst) e Alicia (Elle Fanning). (Adoro Cinema)

Ao longo de duas décadas trabalhando com cinema, a diretora Sofia Coppola alcançou um feito muito difícil: sair da sombra do pai, o consagrado cineasta Francis Ford Coppola, para criar uma identidade própria como realizadora. Foi além: já em As Virgens Suicidas, seu longa-metragem de estreia, Sofia conquistou um público cativo, que lhe alçou ao status de cult. Dali em diante, compilou trilhas sonoras irresistíveis para seus trabalhos e até ganhou um Oscar de melhor roteiro original por Encontros e Desencontros. Entretanto, a filmografia da diretora nunca chegou a estabelecer comigo uma relação das mais sólidas, especialmente no que se refere aos últimos três longas assinados por ela: o tedioso Um Lugar Qualquer, o mediano Bling Ring: A Gangue de Hollywood e o interminável A Very Murray Christmas, produzido com a Netflix. Dessa forma, nem mesmo o prêmio de melhor direção em Cannes fez com que eu criasse expectativas com O Estranho Que Nós Amamos, o primeiro remake da carreira de Sofia. Curiosamente, é bem provável que a combinação de não esperar muita coisa e o fato de não ter conferido o longa original dirigido por Don Siegel e estrelado por Clint Eastwood tenha sido o empurrão perfeito para chegar à sessão de braços abertos, uma vez que O Estranho Que Nós Amamos é o projeto da diretora que mais me convenceu e envolveu desde o pop Maria Antonieta, de 2006.

Segundo a própria Sofia, o que fez toda a diferença para que ela finalmente quebrasse o preconceito com a ideia de comandar uma refilmagem foi a possibilidade de pegar uma história contada do ponto de vista masculino e invertê-la para o feminino. É bem verdade que O Estranho Que Nós Amamos versão 2017 poderia ser um hino mais memorável em termos de feminismo, mas as leituras possíveis a partir de uma riquíssima mise-en-scène e das relações estabelecidas entre os personagens justificam a reconstrução proposta por esse remake. Se a tensão sexual claramente toma conta da primeira parte da obra, é também importante perceber que ela só é possível a partir do talento da diretora em fazer com que o soldado vivido por Colin Farrell se sinta encurralado perante aquelas mulheres, enquanto elas, a princípio, se descubram meramente intrigadas e atraídas por sua presença. O cômico dessa situação toda – e que revela muito da mediocridade masculina na vida como um todo – é que a “ameaça” feminina não tem embasamento factual algum, sendo apenas algo inventado pela fraqueza desse homem que, após sofrer um ferimento de guerra, se vê impotente e totalmente dependente delas (e a informação de que ele desertou dos combates para não morrer só reforça o quanto a frouxidão é traço característico de sua personalidade). Igualmente medíocre é a intolerância dele ao recriminar uma decisão drástica tomada pelas personagens quando, na verdade, ele deveria agradecê-las pela coragem frente a uma escolha tão definitiva e que, caso tomada por peritos do sexo masculino, ele obviamente interpretaria de maneira bem diferente.

Evocando assumidamente …E o Vento Levou no sentido de mostrar as mulheres sulistas dos Estados Unidos em tempos solitários de guerra, Sofia Coppola também torna todas essas leituras possíveis na maneira com explora o imenso casarão em que a trama é encenada. Imponente em tamanho, mas falido em termos de imagem frente a conflitos bélicos tão maiores, o cenário se torna mesmo intimidante para aquele homem porque as mulheres dominam cada centímetro da arquitetura: dos banquetes preparados nas cozinhas às portas que só se abrem e fecham sob o comando delas, o filme leva o espectador para dentro daquele universo tanto quanto qualquer um dos personagens. É inegável que as desculpas para que a permanência do tal soldado no casarão se prolongue dia após dia às vezes soam rasteiras, expositivas e quase forçadas, mas esse defeito é amplamente compensado pelo ótimo trabalho de elenco. Por mais que Elle Fanning não traga tanta dimensão a um papel que deveria ser muito mais do que a “aborrescente” que começa a sentir a sexualidade à flor da pele, Kirsten Dunst e, principalmente, Nicole Kidman imprimem personalidade a mulheres que se complementam em suas diferenças. Já Colin Farrell, como a única figura masculina do filme, confere uma boa dualidade a um homem que comanda com segurança o seu charme, mas não está nem perto de saber lidar com suas incontroláveis fraquezas.

Se todos essas percepções podem realmente ser mera questão interpretativa, variando de olhar para olhar, o que não deve ser colocado em xeque é o talento de Sofia Coppola em desenvolver um dos seus melhores roteiros do ponto de vista estrutural. Em breves 93 minutos, O Estranho Que Nós Amamos é certeiro em cada conflito que sugere, cria, desenvolve e finalmente conclui. É um roteiro que impressiona por saber o timing ideal para cada um de seus acontecimentos, sem deixar que a trama se prolongue com conflitos que já foram claramente absorvidos ou que o texto frustre o espectador com conclusões rasteiras. Há ritmo e interesse aqui, o que certamente não era possível constatar nos últimos três filmes da diretora. Ainda que existam problemas pontuais, como a fotografia excessivamente escura (e que mais atrapalha do que confere alguma eficiência ao clima) e que faltem as criativas brincadeiras entre o clássico e o contemporâneo feitas em Maria Antonieta (lembram como era delicioso ver o Palácio de Versalhes ao som de The Strokes, Bow Wow Wow e The Radio Dept.?), O Estranho Que Nós Amamos volta a apresentar, depois de três filmes para lá de questionáveis, uma cineasta que justifica todo os seu status de cult e independência autoral.

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