All we did was survive.
Direção: Christopher Nolan
Roteiro: Christopher Nolan
Elenco: Fionn Whitehead, Tom Hardy, Mark Rylance, Cillian Murphy, Barry Keoghan, Harry Styles, Kenneth Branagh, Damien Bonnard, Tom Glynn-Carney, Jack Lowden, Lee Armstrong
EUA, 2017, Drama, 106 minutos
Sinopse: Na Operação Dínamo, mais conhecida como a Evacuação de Dunquerque, soldados aliados da Bélgica, do Império Britânico e da França são rodeados pelo exército alemão e devem ser resgatados durante uma feroz batalha no início da Segunda Guerra Mundial. A história acompanha três momentos distintos: uma hora de confronto no céu, onde o piloto Farrier (Tom Hardy) precisa destruir um avião inimigo, um dia inteiro em alto mar, onde o civil britânico Dawson (Mark Rylance) leva seu barco de passeio para ajudar a resgatar o exército de seu país, e uma semana na praia, onde o jovem soldado Tommy (Fionn Whitehead) busca escapar a qualquer preço. (Adoro Cinema)
O que acontece quando um diretor toma consciência de seus próprios talentos? Predominantemente, coisas ruins. O diretor indiano M. Night Shyamalan é um exemplo perfeito: a partir do momento em que se consagrou mundialmente com O Sexto Sentido, passou a ser refém de seus finais surpreendentes, tentando reproduzir, em praticamente todas as obras posteriores realizadas com a sua assinatura, a fórmula que o impulsionou ao estrelato e ao reconhecimento mundial. Em uma escala menor, mas com a papelada já devidamente encaminhada, Christopher Nolan vinha sofrendo do mesmo mal nos últimos anos. Tanto Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge quanto Interestelar tentavam maximizar, em todas as frentes, as narrativas complexas e engenhosas tão características de célebres filmes dirigidos por ele, como O Grande Truque, A Origem e os dois primeiros volumes de Batman. Só que a situação preocupava especialmente em O Cavaleiro das Trevas Ressurge e Interestelar porque era cada vez mais evidente e irrefreável a sua inabilidade de síntese (o segundo, principalmente, fazia sentir – demais! – as suas quase três horas de duração). Mais do que isso, eram trabalhos que glorificavam equivocadamente a vontade de tornar engenhosas e mirabolantes tramas que, na prática, tinham pouquíssimo a dizer em termos de conteúdo ou que até mesmo se resolviam de forma muito manjada. O sinal vermelho já estava ligado para Nolan, e algo precisava ser feito.
E foi. Isso porque há também outra tomada de consciência importante e capaz de redefinir a carreira de um cineasta: a de parar, refletir, passar a caneta vermelha no que deu errado e tentar ajustar os erros constatados. Nesse sentido, voltamos a M. Night Shyamalan, que fez exatamente isso no recente Fragmentado, e agora atribuímos esse mesmo espírito de reavaliação ao que Nolan faz em Dunkirk, um filme que, logo de cara, toma uma sábia decisão: a de delimitar bem um relato de guerra com breves 106 minutos, o que, considerando a carreira de Nolan, é uma verdadeira demonstração de disciplina (esse é o primeiro longa dirigido por ele, desde Insônia, em 2002, que tem menos de duas horas de duração). É o pontapé inicial perfeito para um filme que, entre várias qualidades, ganha pontos mesmo por não tentar se ajustar ao gênero de guerra. Nada do que é visto em Dunkirk segue qualquer molde. Por isso, já coloque de lado a sua vontade de ver um filme repleto de contextualizações históricas, batalhas de longuíssimas durações e, claro, duração prolongada. Claro, direto e objetivo, Nolan, que dirige um roteiro de autoria própria, parece não se dar ao direito de perder tempo com firulas, transferindo toda a sua ambição para a técnica. Claro que isso pode ser interpretado como um problema que evidencia o quanto ele definitivamente é melhor diretor do que roteirista, mas, visto sob a luz das viagens estapafúrdias realizadas nas últimas obras e da ideia de que Nolan não larga da ideia de dirigir histórias próprias, aqui se revela como uma qualidade.
Em contramão, o diretor novamente falha no pouco em que tenta mostrar esperteza dramática de roteiro. O fato de Dunkirk, por exemplo, ser estruturado em três linhas temporais diferentes não faz diferença alguma, o que não tem nada a ver com o filme amarrar de forma previsível o encontro de seus três pontos de vista, mas com a própria ineficiência do artifício: dificilmente sentimos que Dunkirk acontece em três tempos diferentes. Tratando-se de conteúdo, ainda há a frustração de ver como o longa não consegue nos familiarizar com qualquer um dos personagens. É certo que Nolan aqui olha para o coletivo (a imensidão da guerra, as centenas de milhares de vida em jogo, o desconhecimento humano em cada uma das missões), mas é indiscutível que há a necessidade da proximidade, como na parte ambientada em alto-mar e estrelada pelo veterano Mark Rylance (em desempenho monocórdico e desinteressante). Mesmo com três ou quatro atores em um pequeno barco, nunca chegamos perto de conhecê-los a fundo (ou sequer lembrar seus nomes), sem falar das desculpas tortas criadas para criar algum tipo de questionamento dramático naquele convívio – e um acidente envolvendo um dos personagens é a exemplificação perfeita de como Nolan tem dificuldades em bolar simples conflitos dramáticos sem apelar para suas reconhecidas engenhosidades e jogadas narrativas.
Ainda assim, é preciso reconhecer a inteligência de Nolan em construir Dunkirk sem que o inimigo jamais seja mencionado ou visto. O perigo é invisível, e essa lógica de ameaça é o que faz os melhores filmes do gênero de terror tão fascinantes. É a partir dessa escolha, muito antes da técnica, que a imersão do longa funciona tão bem. Aqui, tiros podem vir nos momentos mais inesperados. Bombas chegam sem qualquer aviso prévio, seja por ar ou mar. E, por fim, o próprio ser humano também é perigoso frente ao desespero, mesmo que ele compartilhe a mesma trincheira do que seus companheiros de guerra. Toda essa percepção é amplificada pelo inegável talento do diretor em orquestrar cada elemento técnico como se sempre estivesse fazendo algo novo, imprevisível. E é de se estranhar que detratores reclamem tanto de Dunkirk ser um filme “barulhento” quando Mad Max: Estrada da Fúria, até pouco tempo atrás, também abusava tanto (e no bom sentido) dos elementos sonoros e estéticos para trazer uma adrenalina ímpar. Tudo é mesmo uma questão de percepção, pois Dunkirk é nervoso do jeito que é majoritariamente em função do seu trabalho de som, incluindo a trilha sonora de Hans Zimmer, que entrega composições responsáveis por cobrir praticamente todo o tempo de projeção. E o melhor: a trilha jamais resulta redundante, incômoda ou invasiva. Coisas que só mestres como Hans Zimmer conseguem fazer. E diretores bem relacionados com a técnica podem costurar.
Se Nolan não é roteirista dos mais brilhantes, certamente ele transfere seu talento como contador de histórias para os elementos técnicos, especialmente quando eles estão a favor de um texto que, apesar de falhas pontuais, tem fronteiras bem delimitadas. Ao extrapolar menos, o diretor de Dunkirk não perde sua personalidade (isso também é importante: de nada adianta tentar corrigir erros e perder a própria essência), entregando uma obra que, com ótica mais documental, prefere observar do que discutir uma época, uma guerra. Ao torná-la grande nos sentidos, muitas vezes esquece de dar espaço para alguma história ou emoção propriamente dita, dando a entender que o exercício formal e estético é mesmo mais soberano do que qualquer outra coisa. Dessa vez, por outro lado, ao contrário de como foi com Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge e Interestelar, é questão de identificação mesmo com o cinema do diretor, e não uma clara constatação de problemas difíceis de justificar. Há quem torne histórias grandes com um texto simples; outros que se dedicam ao poder da técnica e não ao do texto. Dunkirk se encaixa no segundo caso. E se não é possível conciliar, como dizer que um estilo é melhor do que outro? Como valorar tudo isso? Cinema deve ser sempre o que gostaríamos que ele fosse e não o que ele é? Se Dunkirk deve ser considerado ou não um grande filme, eu ainda não sei. Mas, se ele levanta reflexões como essas, alguma coisa deu certo.