Desde o advento da internet, nunca houve um Oscar tão complicado de se acompanhar. E isso não tem nada a ver com La La Land: Cantando Estações ter monopolizado a disputa ou com as reações adversas que um filme instantaneamente desperta ao se tornar o grande favorito da temporada, mas sim com a completa intolerância de quem se propõe a discutir a temporada. Ou melhor: problematizá-la como se fosse uma missão de vida. É um pouco estranho pensar que a situação seja encarada dessa maneira visto que um salto histórico foi dado no sentido de representatividade. Algumas discussões são inegavelmente importantes, enquanto outras parecem apenas pretexto para procurar cabelo em ovo, especialmente quando o engajamento na discussão é mais pose do que reflexão genuína. Com pessoas metendo o bedelho em assuntos espinhosos só para polemizar, muitas vezes foi rompida a barreira do bom senso em relação a diversos ideais.
Há quem considere errado gostar de La La Land por ele ser supostamente machista. Adorar Viola Davis também se revela uma opinião extremamente rasteira para certos espectadores, já que existem outras atrizes negras tão talentosas quanto ela que não recebem o mesmo reconhecimento. Já a possível vitória de O Apartamento é motivo de torcida como forma de protesto contra Donald Trump e não por méritos próprios ou como um claro reflexo de que a Academia tem dificuldades em premiar comédias como Toni Erdmann. E o que dizer de Amy Adams, cuja ausência por A Chegada não podemos lamentar já que foi Ruth Negga quem entrou de surpresa na disputa com Loving? Sobrou até para Lion porque um garoto pobre e de origem indiana não pode ser resgatado por uma família branca e rica porque isso é celebrar os chamados white saviors.
Entretanto, não me interpretem de maneira errada. O que quero dizer é que não há nada problema em levantar qualquer uma dessas questões (no cinema, como diz o crítico Luiz Carlos Merten, experiências são feitas de olhares particulares: se eu não enxergo uma coisa, isso não significa que tal coisa realmente não esteja lá) ou muito menos em elucidar problematizações que são realmente necessárias para os tempos efervescentes que vivemos no cinema. Só que o pessoal, especialmente nas redes sociais, pesa demais na discussão, impondo opiniões como verdades absolutas e não como ferramentas para um debate democrático. Para falar sobre cinema no Oscar 2017, você precisa amar ou odiar determinada coisa, defender ou recauchutar determinada posição. Até porque, dizem, se você se exime de entrar nesse jogo, você comete o pecado da omissão. Confesso que isso cansa bastante.
Tem sido um exercício complexo, onde frequentemente me indigno com quem parece ver filme só para postar polêmica na internet ao mesmo tempo em que procuro apurar o olhar, na medida do possível, de quem acha que representatividade não é algo assim tão importante. Mas foi difícil porque não existem discussões, e sim monólogos para ver quem tem mais razão ao final. Felizmente, não estamos mais em Esparta para ganhar discussões no grito, e, por isso, aos poucos fui procurando me distanciar do furacão que se tornou a temporada de prêmios. Não é diferente agora. Muito já falamos aqui no blog sobre o que determinadas indicações simbolizam em termos de representatividade (e isso inclui até a lembrança de Meryl Streep por Florence: Quem é Essa Mulher?, única intérprete que concorre por um papel de comédia esse ano) e sobre o quanto fatores exteriores às vezes precisam ser considerados na disputa, mas agora vou pendurar um pouco as chuteiras nesse assunto para falar sobre os filmes em si e sobre o quanto a gente vê merecimento em um ou outro dentro da tela. Vamos nessa?
O olhar comum
É o tipo de cinema que sempre me tocou e que poucas vezes o Oscar celebrou como agora: aquele sobre pessoas comuns como eu e você. Seja em musicais (La La Land), relatos históricos (Estrelas Além do Tempo), adaptações teatrais (Um Limite Entre Nós) e situações muitos próximos da realidade (Moonlight: Sob a Luz do Luar), a temporada se debruçou sobre sonhos, dores, esperanças e dúvidas identificáveis a todos nós. Não é nem loucura colocar Elle nesse balaio, já que sua protagonista é, em muitos aspectos, a representação da mulher madura, independente, bem sucedida e sexualmente ativa que o cinema norte-americano raramente retrata dessa maneira. Por isso, percebam como as pessoas de realidades distantes e em situações extraordinárias foram aos poucos perdendo os holofotes. É o caso de Jackie, antes tão bem cotado para dar um segundo Oscar para Natalie Portman e até para concorrer nas categorias principais. Seu destino foi ser finalista em dois segmentos técnicos e perder o favoritismo para a sua intérprete.
Os violinos do Titanic
Uma brincadeira da internet dá conta de que o musical La La Land é como o trio de músicos que tocam violino enquanto o Titanic afunda no filme de James Cameron. E que problema há no escapismo? Um filme, por não ser tão engajado socialmente ou politicamente quanto os outros, é inferior por causa disso? Na crítica de La La Land já havia falado sobre o preconceito contra a leveza de um romance, mas talvez seja mesmo necessário um filme como esse, que nos propõe a sair um pouco de um mundo que, a cada dia, noticia as coisas mais absurdas. A vida está pesada e não há mal nenhum em ir ao cinema para sonhar com realidades paralelas. É a homenagem de La La Land aos clássicos musicais de Hollywood e esse seu escapismo que despontam o filme de Damien Chazelle como franco favorito ao Oscar de melhor filme. Simplesmente não há disputa. Antes assinalado como uma alternativa, Moonlight se enfraqueceu na temporada ao perder o Screen Actors Guild Awards de melhor elenco, ficando apenas com o Globo de Ouro de melhor drama na bagagem. Caso vença, o filme de Barry Jenkins desafiará toda a matemática dos prêmios, o que só aconteceu de verdade com Crash – No Limite em 2006 (Spotlight foi um caso à parte ano passado).
Discussão de sobra entre as atrizes
Não houve categoria mais polêmica entre as atuações do que a de melhor atriz. Com a ausência de Amy Adams por A Chegada, caíram pesado em cima de Meryl Streep (Florence: Quem é Essa Mulher?), que realmente não mereceu a indicação, mas se esqueceram que, considerando o histórico de todos os outros prêmios da temporada, quem entrou de última hora foi Ruth Negga, que não acho que faça nada de muito maravilhoso em Loving para estar aqui também. Com Natalie Portman (Jackie) já considerada uma carta fora do baralho, a disputa sobra para Emma Stone (La La Land) e Isabelle Huppert (Elle), com a primeira tendo larga vantagem por ter conquistado o BAFTA e o SAG (pouco conta o Globo de Ouro, já que ela só concorria com Meryl lá). Em contramão, não considerem a francesa uma impossibilidade, pois, além de ser um ícone do cinema europeu mundialmente adorado pela crítica e ainda em plena atividade, Huppert vem sendo celebrada mundo afora, algo que nunca aconteceu em sua carreira. Ela tem feito direitinho o tema de casa, concedendo entrevistas para todos os meios, participando de todos os prêmios e sendo fotografada por revistas importantíssimas. Ainda que o histórico dos prêmios trabalhe contra a sua vitória, em termos de Oscar, vale a velha lógica: quem é visto termina por ser lembrado.
E a vida pessoal?
Casey Affleck reacendeu a chama das discussões sobre até que ponto a vida pessoal de um ator deve interferir no julgamento de seu trabalho no cinema. Com acusações de assédio sexual, Affleck vem colhendo a antipatia de muita gente por essa situação, o que passa um pouco longe de mim: já que o filme está aí, prefiro julgá-lo exclusivamente por ele, e aí há de se reconhecer o quanto Affleck é sensacional em Manchester à Beira-Mar. A disputa é de igual para igual com Denzel Washington em Um Limite Entre Nós, já que ambos estão inspirados em seus respectivos filmes, mas apresentando estilos bem diferentes de interpretação. Também seria justo colocar no mesmo patamar o jovem Andrew Garfield, que tem em Até o Último Homem o momento mais expressivo de sua carreira até agora. No geral, o nível da categoria é excelente, onde somente Ryan Gosling concorre sem muitos méritos por La La Land. Para quem for participar de algum bolão, a disputa se divide entre Casey e Denzel, com uma pequena vantagem do primeiro considerando o número de prêmios conquistados na temporada.
Coadjuvantes pulverizados
Quer uma estatueta ainda mais disputada? Então dê uma olhada entre os atores coadjuvantes. Repetindo a situação do ano passado, a seleção desse ano se divide entre intérpretes que ganharam diferentes prêmios por seus desempenhos. Mahershala Ali vem com o SAG por Moonlight e Dev Patel com o BAFTA por Lion: Uma Jornada Para Casa. Nem o Globo de Ouro ajuda a desempatar a situação, já que o vencedor lá foi Aaron Taylor-Johnson, por Animais Noturnos, que sequer concorre ao Oscar. Nunca subestime o poder de um queridinho da Academia como Jeff Bridges, que tem sido celebrado pelo mesmo papel desde Coração Louco (e vale lembrar que, por essa lógica, Christoph Waltz ganhou um segundo Oscar de coadjuvante por Django Livre em um ano igualmente pulverizado). Agora, se os votantes realmente fossem espertos, uma consagração para Michael Shannon por Animais Noturnos não cairia nada mal dado a falta de favoritismo da categoria (e o fato de que, claro, o ator é sempre uma unanimidade, menos em coisas como Homem de Aço). O único que infelizmente tem suas chances zeradas é o jovem Lucas Hedges, o meu favorito entre os cinco e que é uma grande revelação em Manchester à Beira-Mar.
Do protagonismo às participações de luxo
Viola Davis bem que poderia estar concorrendo como protagonista por Um Limite Entre Nós e, mesmo que a aceite como coadjuvante no filme dirigido pelo colega Denzel Washington, é inegável o quanto sua nova classificação novamente suscita a discussão sobre a categoria de coadjuvante ser um reduto de protagonistas que ajustam sua campanha para ganhar um prêmio que não conquistariam entre as atrizes principais. Curiosamente, existe outro extremo: o de Michelle Williams, que, caso concorresse ao Emmy por Manchester à Beira-Mar, seria enquadrada na categoria de atriz convidada e não de coadjuvante. Nicole Kidman também tem papel bem pequeno em Lion, deixando apenas para Octavia Spencer (Estrelas Além do Tempo) e Naomie Harris (Moonlight: Sob a Luz do Luar) a representação fiel da categorização de coadjuvante em tempo de cena e relevância. Viola reina soberana como favorita e também como merecedora, mas bem que também poderia existir algum espaço para a Naomie Harris, não?
Categorias técnicas consagrarão La La Land?
La La Land já fez história ao se juntar aos clássicos Titanic e A Malvada como recordista de indicações ao Oscar, mas, por outro lado, é bem provável que não leve para casa um número histórico de estatuetas (chutando por cima, deve sair com cerca de oito prêmios, a mesma quantia de Quem Quer Ser Um Milionário?, outro filme repleto de sonhos e otimismo em um ano de obras com grande cunho dramático). O que decide isso é como a Academia reagirá ao filme de Damien Chazelle em categorias técnicas, o que nos leva a considerar preferências históricas dos votantes. É bem possível, por exemplo, que Jackie fature melhor figurino, já que filmes contemporâneos raramente ganham essa estatueta. Mais provável ainda é que Até o Último Homem leve pelo menos um dos segmentos de som dado o favorável histórico de longas de guerra na categoria (Cartas de Iwo Jima e A Hora Mais Escura são os exemplares mais recentes). Também não deixo de ter minhas dúvidas se a linda fotografia de Moonlight não é capaz de desbancar La La Land como forma de dar algum tipo extra de protagonismo ao filme de Barry Jenkins, que parece ter chances reais de consagração apenas em ator coadjuvante e roteiro adaptado. Aí é questão de dar sorte no bolão mesmo! As nossas apostas finais estarão por aqui no próximo post!