
Poesia e realidade se misturam nos melhores momentos de Neruda, que se engrandece em todos os sentidos ao deixar de lado as formalidades históricas.
ÁGUAS RASAS (The Shallows, 2016, de Jaume Collet-Serra): O desafio que existe em assistir a Águas Rasas é o mesmo de todos os outros filmes do diretor espanhol Jaume Collet-Serra: saber até que ponto devemos nos desprender de coincidências e exageros para realmente curtir a experiência. O cinema realizado por ele é indiscutivelmente comercial (levam sua assinatura os suspenses de gosto duvidoso A Casa de Cera e A Órfã, além de outras obras mais inofensivas mas igualmente esquecíveis como Sem Escalas), estilo que está novamente impresso em Águas Rasas, que não consegue se esquivar de comparações com o indie Mar Aberto e com (obviamente) o clássico Tubarão. Ou seja, nada de muito novo é contado aqui, e o jeito é não levar a situação muito a sério para embarcar na proposta que, quando encarada dessa forma, diverte e prende a atenção. Tecnicamente, Águas Rasas capta o realismo da tensão vivida pela protagonista, o que é fundamental para não tirar o espectador do filme. O problema é que, assim como em todos os filmes do diretor, a situação sai do controle nos momentos derradeiros, abusando da boa vontade do espectador de todas as formas possíveis. Águas Rasas não escapa disso, construindo um clímax de resoluções hiperbólicas para uma história que, de repente, passa a ser sobre a implicância pessoal de um tubarão com uma surfista. Aí sim, em um momento tão crucial, o longa dá uma daquelas rasteiras que desprendem a plateia por completo da experiência.
CONTADOR, O (The Accountant, 2016, de Gavin O’Connor): Cinco anos após o extraordinário Guerreiro, o diretor Gavin O’Connor volta a misturar ação e drama em uma receita, que, dessa vez, prioriza o primeiro gênero ao segundo. Particularmente, prefiro a composição inversa (é ela que me faz ser tão fã de Guerreiro), o que não chega a tirar os méritos de O Contador, um filme bem executado e que reforça a mão firme de O’Connor atrás das câmeras. Mas, nesse caso, é uma questão de gosto: ao conduzir uma trama essencialmente investigativa, o longa, cujo roteiro é escrito por Bill Buduque (que estreou mal no cinemas em 2014 com o tedioso O Juiz), termina por se emaranhar em uma série de situações e complicações desnecessárias, tornando a história embolada demais em vários momentos. E quando não há nada de muito revelador saindo dessa cerimônia toda, fica a impressão de que tudo não passou de um capricho (algo que tem se tornado a especialidade de Christopher Nolan desde Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge). A situação é exatamente essa com O Contador, que tem um elenco de suporte digno de nota (J.K. Simmons, John Lithgow, Jeffrey Tambor), mas parece não sacar que é no confronto – inclusive físico – do protagonista com seu passado, seus fantasmas e suas raízes familiares que O Contador ganha uma força que vai além da mera testosterona que Gavin O’Connor tem inegável facilidade em colocar na tela.
NERUDA (idem, 2016, de Pablo Larraín): Já de fora da lista de pré-selecionados ao Oscar 2017 de melhor filme estrangeiro, Neruda marca a nova parceria entre o diretor Pablo Larraín e o astro Gael García Bernal, que trabalharam juntos no excelente No. O resultado aqui é mais irregular porque Neruda traz dois filmes dentro de um: enquanto a primeira parte não passa de um correto relato histórico (que, dependendo da disposição, pode ser até um pouco sonolento), a segunda esbanja criatividade ao se apropriar da poesia chilena de Pablo Neruda para costurar a trama. A quebra narrativa do filme é clara, e é de se perguntar porque Larraín perde tanto tempo com as cerimônias de contextualização histórica ao invés de simplesmente traduzir, desde o início, a bela obra do poeta para toda a narrativa do filme. Quando se torna um filme mais poético do que histórico, Neruda entrega momentos genuinamente emocionantes do ponto de vista não apenas emocional, mas também cinematográfico (as cenas finais de Gael na neve são impecáveis). Com essa libertação, o longa fascina ao misturar realidade e ficção e ao refletir sobre o protagonismo de cada personagem na trama (e, por que não, na vida). É aí que está o verdadeiro DNA do cinema de Larraín: no olhar criativo e diferenciado que lança para todo e qualquer tema – até mesmo os aparentemente banais.
NÓS DUAS DESCENDO A ESCADA (idem, 2016, de Fabiano de Souza): Se Nós Duas Descendo a Escada tem um mérito inegável, esse é o de não problematizar a questão sexual de suas duas protagonistas. Ao contrário do que se vê nos filmes mais rasteiros de temática LGBT, a obra assinada por Fabiano de Souza não se preocupa em radiografar preconceitos para ter algum estofo dramático. Professor e critico de cinema, o gaúcho prefere contar uma história muito cotidiana sobre duas mulheres que se apaixonam e que, depois, precisam aprender a lidar com a desconstrução desse amor. A forma quase caseira com que Nós Duas Descendo a Escada é filmado poderia ser um ganho em realismo caso o roteiro e as ideias não fossem tão frágeis. Abarrotado de referências literárias, musicais e cinematográficas que saltam de forma gratuita e pouco orgânica na tela, o longa aposta em obviedades até na concepção de suas personagens: enquanto a Mona de Carina Dias é a clássica mulher madura, experiente e bem resolvida, a Adri de Miriã Possani é a jovem insegura em questões, pessoais, sexuais e profissionais, evidenciando um contraponto que já foi insistentemente explorado em produções memoráveis como Azul é a Cor Mais Quente e Carol. Como vitrine para duas boas atrizes e um bom passeio por Porto Alegre, Nós Duas Descendo a Escada tem seu valor. Já todo o resto está muitos degraus abaixo.