Crianças e adultos sentem o tempo de forma muito diferente, e esse é um material riquíssimo para qualquer dramaturgia. À Deriva, dirigido por Heitor Dhalia em 2009, captura bem a tese ao trabalhar dois pontos de vista bastante distintos nesse sentido. Enquanto um veraneio em Búzios, no Rio de Janeiro, pode ser apenas uma pequena temporada de reflexões e discussões para que Clarice (Débora Bloch) e Matias (Vincent Cassel) tentem ajustar os ponteiros de um casamento em pedaços, é bem provável que a jovem Filipa (Laura Neiva), de 14 anos, sinta as semanas veranis como uma difícil e inconsciente jornada de amadurecimento rumo a respostas que só as dores da vida podem trazer. Os pais da garota não se atentam tanto a essa disparidade de tempos enquanto vivem momentos derradeiros de um casamento falido, mas Filipa, cercada por todos os questionamentos da transição para a vida adulta, sabe muito bem o que acontece em casa, o que só amplia a confusão emocional de uma temporada na praia que, em alguns dias, sintetiza o emocional de todos os membros da família.
Exibido na mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes, À Deriva é o exemplo máximo da sofisticação estética e narrativa do diretor pernambucano Heitor Dhalia, que, antes desse filme estrelado pela estreante Laura Neiva e pelos já conhecidos Débora Bloch e Vincent Cassel, havia dirigido Nina e O Cheiro do Ralo. No roteiro escrito por ele, com colaboração de Vera Egito, o contexto e a desintegração familiar ganham frescor porque são narrados a partir do ponto de vista da filha do casal. Ao mesmo tempo em que acompanha o atrito entre os pais e secretamente descobre a infidelidade de um deles, a jovem precisa lidar uma adolescência que cada vez mais lhe impõe interesses amorosos e o inevitável desabrochar sexual. Muito à frente do tempo de seus amigos, ela, por de certa forma tomar consciência dessa sua evolução, acha que entende tudo da vida – e essa interpretação errada do que é de fato conhecer a vida lhe coloca equivocadamente a missão de tentar fazer alguma diferença dentro de casa, onde pensa que pode – e deve – influenciar determinadas resoluções que simplesmente estão fora de seu alcance.
Heitor Dhalia, que, logo após a realização de À Deriva viajou aos Estados Unidos para fazer o já esquecido 12 Horas com Amanda Seyfried, só ganha ao transferir a interpretação dos dramas para os olhos de Filipa, até porque, caso contado a partir de visões independentes dos núcleos, o resultado poderia ser dos mais mornos. E o saldo positivo não é apenas na questão do texto: Laura Neiva é espetacular como a garota que pode até não ter a nossa simpatia, mas cujos conflitos nunca despertam indiferença. Em seu primeiro trabalho no cinema (ela, infelizmente, não alcançou o reconhecimento que merecia, inclusive na TV), tira de letra um papel repleto de desafios e não fica devendo nada aos também ótimos Débora Bloch e Vincent Cassel. De estética impecável (não são apenas as belíssimas paisagens de Búzios que engrandecem a fotografia do já falecido Ricardo Della Rosa), À Deriva ecoa após a sessão, claro, pela linda e inesquecível trilha sonora de Antonio Pinto, e, acima de tudo, pela forma franca e natural com que transforma temas essencialmente convencionais em momentos pequenos, mas únicos em suas particularidades.