
Seres humanos repletos de falhas, os personagens de The Affair chegam ao segundo ano com suas angústias exploradas com mais complexidade por um roteiro em constante amadurecimento.
Ninguém mais parece se importar com The Affair. O próprio Globo de Ouro que, no ano passado, celebrou o programa criado pela dupla Hagai Levi e Sarah Treem com os troféus de melhor série e atriz dramática não deu muita importância para a temporada que estreou este ano, conferindo-lhe apenas uma merecida indicação para Maura Tierney como atriz coadjuvante. O público também já não acompanha mais a trama com fervor e é difícil encontrar quem tenha assistido religiosamente ao segundo ano do relacionamento entre Alison (Ruth Wilson) e Noah (Dominic West). O esquecimento é crime dos grandes porque The Affair consegue, em sua nova temporada, abraçar muito mais a complexidade dos personagens e dos sentimentos ao invés de se focar na engenhosidade dos fatos – e o resultado é uma bela ascensão dramática para um programa que merecia mais atenção por sua maturidade ao falar sobre relacionamentos complicados e seres humanos repletos de falhas.
Nunca escondi os meus receios com os rumos de The Affair (afinal, até onde dura uma série cujo plot se sustenta a partir um caso extraconjugal?) e muito menos com o suspense capenga que os criadores colocaram em flashforwards na trama e ainda estenderam para o segundo ano, mas é bom ver uma maior maturidade na nova temporada, que coloca nos holofotes discussões muito mais adultas acerca de casamentos, traições e relacionamentos. Há muito a ser dito sobre esses temas e a leitura deve parar por aqui para quem não quer pegar spoilers, mesmo que os próximos parágrafos tentem dizer o mínimo possível sobre os acontecimentos da segunda temporada, cujo último episódio foi exibido no dia 20 de dezembro.
Apesar de consistente na criação de seus personagens e no desenvolvimento de seus dramas pessoais, a primeira temporada de The Affair não deixava de ser uma fase introdutória que eventualmente ganhava tons de novela mexicana (impossível esquecer um encontro decisivo na estação de trem ou uma arma apontada para que determinado personagem finalmente tomasse uma decisão). No segundo ano, parece não existir mais tanto tempo para dramas simplistas envolvendo descobertas de traição ou sucessões de mentiras – e, se eles existem aqui, estão todos bem arquitetados e com ótimos propósitos. De brinde, os roteiristas ainda retornaram com uma nova aposta para a estrutura do programa: se antes The Affair se construía a partir da percepção isolada dos protagonistas Noah e Alison, agora a história também ganha o ponto de vista de Helen (Maura Tierney) e Cole (Joshua Jackson), os cônjuges traídos.
Tem quem saia ganhando muito com a multiplicidade mais ampla de olhares, como Helen, a esposa abandonada que, insegura e sempre vivendo à sombra do dinheiro dos pais, tenta reconstruir sua vida como mãe e mulher. Já outros saem perdendo, como Cole, dono do arco dramático menos interessante e que parece viver uma história paralela, já que seu personagem está distante do centro dos acontecimentos (ele vive em outra cidade e inicia um relacionamento previsível com uma estrangeira vivida pela atriz Catalina Sandino Moreno, indicada ao Oscar em 2005 por Maria Cheia de Graça). Os quatro pontos de vista organizados de forma aleatória estagnam, em princípio, o andamento de The Affair (principalmente nos episódios iniciais, quando a história demora a engrenar), mas é questão de tempo para que comecem a enriquecer a história como um todo.

Um dos destaques da segunda temporada, Maura Tierney representa The Affair no Globo de Ouro com uma indicação na categoria de melhor atriz coadjuvante.
É particularmente eficiente como os roteiristas lançam diferente olhares para o divórcio entre Noah e Helen, por exemplo. A separação está sendo mais amigável ou mais agressiva? Helen é uma figura magoada ou indiferente? E Noah? Seria ele o pai realmente devotado ou o homem que está interpretando tal papel para ganhar a guarda dos filhos? Se em termos de conflitos o divórcio tem bobeiras dramáticoa quase imperdoáveis (sério mesmo que precisava Helen se descuidar com drogas para a situação começar a se resolver?), em análises The Affair se compensa – e é importante perceber como a percepção muda discretamente de um capítulo para outro até mesmo nos figurinos e na fotografia para cada um dos personagens.
Quando o divórcio finalmente se resolve, The Affair passa a lapidar seus dramas com uma maturidade invejável, lançando questões mais do que pertinentes não apenas para os personagens mas para os próprios espectadores. Afinal, como se configura a confiança em um relacionamento que nasceu justamente a partir da quebra dela em um outro casamento? Como construir uma nova família depois de você ter abandonado a sua? E a mais intrigante: o que acontece quando um caso extraconjugal vira um romance oficial? Afinal, não seria justamente a impossibilidade do amor o afrodisíaco daquela relação? Noah e Alison não imaginavam que o novo caminho que trilhariam juntos seria tão difícil, especialmente quando ambos se dão conta de que, no final das contas, viraram um casal normal como qualquer outro. A traição, na realidade, pode ter sido apenas um intervalo de suas vidas individuais tão cheias de dúvidas – e dúvidas que, vale refletir, não têm necessariamente a ver com a vida compartilhada, e sim com o que cada um quer para o seu próprio destino, independente de relações.
As interpretações sobre a traição em si ganham ainda mais facetas na segunda temporada. Para Alison, pode ser um problema emocional, uma compulsão ou o resultado de uma vida em constante insatisfação. Já Noah chega a questionar que, para um artista como ele (hoje um escritor finalmente famoso e reconhecido pela crítica), pode ser uma forma de conhecer o máximo de pessoas possíveis, viver o maior numero de experiências e apurar cada vez mais os sentidos. O que Noah considera é que o descompromisso com a monogamia talvez seja algo antropológico e não necessariamente desleal ou meramente sexual. Mas ele seria um cretino por querer isso e uma vida estável ao mesmo tempo?

Joshua Jackson tem um bom personagem, mas rivaliza com um roteiro que o coloca longe do centro dos acontecimentos principais da trama.
Sujeito facilmente odiável em um primeiro momento, Noah, na realidade, tem todas suas falhas justificadas ou pelo menos discutidas. Autor celebrado e com o sucesso cada vez mais inflando seu ego, ele parece novamente não saber o que fazer da vida até mesmo com toda a inesperada repercussão de Descent, seu romance secretamente autobiográfico baseado no relacionamento extraconjugal com Alison. Sua nova esposa, por sinal, agora lhe parece quase um estorvo durante a turnê de promoção do livro pelos Estados Unidos. Noah, é verdade, continua uma figura das mais complicadas de se torcer, mas agora está muito mais humano, complexo e defendido com extrema dignidade por Dominic West (que já revelou ter tremendas dificuldades com o papel por justamente odiar o ser humano que seu personagem é).
West, aliás, tem momentos bastante inspirados nesta temporada, muitos deles em um episódio ambientado em uma consulta com sua terapeuta (Cynthia Nixon), e outros na season finale, onde admite que, apesar dos pesares, não se arrepende de ter traído sua ex-exposa com Alison, já que assumir essa relação o livrou de uma vida de comodismos, insatisfações e arrependimentos. Também são belos os momentos que o ator compartilha com Maura Tierney, principalmente aqueles em que ambos já percebem que viraram a página e conseguem falar sobre passado, presente e futuro como duas pessoas que se conhecem há muito tempo e já viveram muitas coisas juntos. A moral da história é que todos os personagens de The Affair são pessoas profundamente falhas e que, cedo ou tarde, e isso é o mais bonito, admitem seus erros com a vontade de repará-los, mesmo que muitos deles sejam eternos.
O calcanhar de aquiles desse apanhado de discussões adultas segue sendo a pífia tentativa de The Affair criar algum suspense com um assassinato e, dessa vez, um julgamento no tribunal. Não funciona porque: a) o clima de suspense já não condiz mais com a trama contemplativa, b) entrega cedo demais revelações que seriam mais impactantes em ordem cronológica, c) a morte em questão envolve um personagem secundário e desinteressantíssimo, e d) como toda novela que inventa de última hora o mistério de um assassinato só para instigar a audiência, cria-se a expectativa e a resolução termina sendo um tanto forçada só para surpreender. Não sei quem colocou na cabeça dos roteiristas que esse mistério deveria durar duas temporadas para ser resolvido e muito menos quem achou essa uma boa jogada para uma história que, neste segundo ano, só cresceu dramaticamente. Dados os acontecimentos do último episódio, tudo indica que, no terceiro ano, as coisas devem ser bem diferentes – e The Affair só tem a ganhar com isso.