So full of history, you see?
Direção: Andrew Haigh
Roteiro: Andrew Haigh, baseado no conto “In Another Country”, de David Constantine
Elenco: Charlotte Rampling, Tom Courtenay, Dolly Wells, Geraldine James, Richard Cunningham, Sam Alexander, David Sibley, Max Rudd, Michelle Finch, Kevin Matadeen, Camille Ucan
45 Years, Reino Unido, 2015, Drama, 95 minutos
Sinopse: Kate Mercer (Charlotte Rampling) está planejando a festa de comemoração dos 45 anos de casada. Porém, cinco dias antes do evento, o marido recebe uma carta: o corpo de seu primeiro amor foi encontrado congelado no meio dos Alpes Suíços. A estrutura emocional dele é seriamente abalada e Kate já não sabe se vai ter o que comemorar durante a festa. (Adoro Cinema)
Nunca defina o britânico Andrew Haigh como um diretor para o público gay. Não é assim que ele quer ser reconhecido. Na realidade, essa nunca foi a sua intenção. É claro que o currículo aponta para um outro caminho: seus dois primeiros longas-metragens, Greek Pete e o ótimo Weekend, falam sobre relações homossexuais e, logo após a realização deles, Haigh foi para a HBO fazer Looking, seriado com a mesma temática. Pura coincidência, segundo ele. Haigh quer ser lembrado, na realidade, como um autor dedicado à complexidade das relações humanas, independente de qualquer definição ou sexualidade. Quem disse isso foi ele próprio, quando exibiu 45 Anos, seu mais recente trabalho, no Festival de Berlim deste ano. No evento, o filme saiu consagrado com os prêmios de melhor atriz e ator para os protagonistas Charlotte Rampling e Tom Courtenay, mas, embarcando na história, logo se percebe que, mesmo que o maravilhoso desempenho da dupla seja um marco, a franqueza dela só seria possível nas mãos de um diretor como Haigh, que compreende que uma simples viagem ao mais íntimo do ser humano pode ser a fonte inesgotável de dramas e reflexões que tantos procuram em circunstâncias mirabolantes.
Assim como em Weekend, o novo filme de Haigh, baseado no conto “In Another Country”, de David Constantine, se utiliza de uma estrutura das mais inteligentes: a de ambientar todos os acontecimentos em um único recorte de tempo – no caso, os quatro dias que antecedem a festa de 45 anos de casamento de Kate (Rampling) e Geoff (Courtenay). É inteligente porque o diretor sabe que não precisamos acompanhar a vida inteira dos personagens na tela para realmente conhecê-los. O que basta é uma conversa onde Kate diz se arrepender não ter tirado mais fotos com o marido ao longo dos anos ou a forma carinhosa com que lembra da infinidade de animais de estimação que tiveram, fazendo uma clara referência ao fato do matrimônio não ter gerado filhos. 45 Anos se constrói e se explica por meio desses pequenos momentos, e a fórmula funciona ainda mais a partir do momento em que Geoff recebe uma carta que reativa lembranças de uma tragédia de anos atrás. Passando do inesperado romance jovem de Weekend para o relato maduro de um casamento de mais de quatro décadas que entra em uma intensa reflexão, Andrew Haigh não tropeça na significativa transição temática e entrega, em 45 Anos, uma sólida história onde o presente é reinterpretado a partir do passado rumo a um futuro agora incerto.
Sabendo o mínimo possível sobre os detalhes da trama, a experiência de mergulhar nesta repentina reavaliação matrimonial se torna ainda mais envolvente, principalmente porque o roteiro aborda o ponto de vista de Kate e não o de Geoff, que seria o escolhido por praticamente todos os diretores. Se, assim como a protagonista, descobrirmos aos poucos o que envolve a tal mensagem recebida e os efeitos que surgem a partir dela, é bem provável nos sentirmos parte desse mesma viagem incômoda e até mesmo dolorosa. O que basta saber sobre 45 Anos é que inicialmente este parece um filme apenas sobre um dilema envolvendo um anúncio entregue por correio, mas a verdade é que tudo toma proporções bem maiores e delicadas que nos levam a pensar que a vida pode ser simplesmente uma série de jogadas certas ou erradas em um universo de aleatoriedades. Entre coisas não ditas e memórias impossíveis de serem ignoradas, o roteiro também nos lembra da dura verdade que às vezes não há proximidade ou casamento que nos garanta conhecer o outro por completo. 45 Anos parte dessas desconstruções, arquitetando cada momento de forma sempre sutil e silenciosa, especialmente do lado de Kate, que é quem o roteiro e a câmera do diretor escolhem seguir em todas as cenas, sem exceção.
Ao mesmo tempo em que é crível ao mostrar como se configuram relações de longa data, o filme sabe lidar muito bem com cada um dos personagens isoladamente. Enquanto a obsessão de Geoff é perfeitamente compreensível (afinal, quem conseguiria deixar de lado as lembranças de um passado como o dele?), a angústia de Kate passa a tomar conta de nós porque a personagem vive praticamente em silêncio, tentando não demonstrar pensamentos e sentimentos que estão claramente lhe consumindo. E é aí que a experiência e o talento de atores como Courtenay e Rampling fazem toda a diferença. Ela, em especial, é quem domina a cena por ter obviamente mais destaque e o papel melhor explorado, mas vale lembrar que são poucas as intérpretes que conseguiriam interiorizar tantas coisas e ao mesmo tempo transparecer isso ao espectador através de somente um olhar ou um gesto. A condução que a britânica adota para o papel vai de acordo com o próprio filme, que sempre tem um certo nervosismo no ar. Isso é resultado da rotina minuciosa da pacata vida dos personagens, da ambientação em uma casa isolada no interior e do naturalismo com que Haigh imprime à história sem o uso de qualquer intervenção, nem mesmo de trilha instrumental.
45 Anos é destas experiências que ficam com o espectador após o desfecho e que só crescem com o passar do tempo. Ficam as lembranças também porque o filme reserva seu melhor para o último dia que acompanhamos da vida de Kate e Geoff. Faz todo sentido, por exemplo, que, nos momentos finais, eles dancem ao som de Smoke Gets in Your Eyes, do The Platters, uma canção que, inicialmente romântica, pode ganhar uma nova leitura sob à luz desse filme. Trechos dela como “Eles me perguntaram como eu sei que o meu amor verdadeiro é verdadeiro” e “Eles disseram que um dia você vai descobrir que todo o amor é cego” são a narração perfeita para este momento que, graças aos dois atores, torna-se repleto de significados – e o que Rampling faz nos exatos 10 segundos finais é de um verdadeiro assombro. Assim, apesar da decepção que é Looking, Andrew Haigh, pelo menos no cinema, continua como um nome para ficarmos sempre atentos – e, para quem vos escreve, fã de carteirinha de dramas sobre relacionamentos e suas complexidades, um cineasta que desde já cria imensas expectativas por seu próximo trabalho.
Assisti a esse filme às 3h da manhã e depois não consegui dormir direito, pensando em tudo o que a personagem de Charlotte Rampling passou: além de não conseguir gerar um filho que o marido tanto queria, ela se vê como uma eterna segunda opção. Um filme belo com um tema extremamente contundente, que comigo atingiu seu objetivo máximo: a reflexão que perdura após dias.
Muito boa sua crítica! Estou seguindo seu trabalho a partir de agora.
Republicou isso em Blog do Rogerinho.