
Juliana Rojas é a diretora de Sinfonia da Necrópole, um dos longas mais interessantes da mostra brasileira. Foto: Cleiton Thiele/Pressphoto
Finalmente achei um tempo para escrever sobre o que tenho visto por aqui em Gramado. A jornada tem sido longa, mas com experiências bastante interessantes. Falando de homenagens, duas aconteceram desde a última vez que escrevi sobre a programação. A primeira na terça-feira (12), com o Troféu Oscarito para Flávio Migliaccio – o adorável Seu Chalita de Tapas & Beijos, mas também o eterno Tio Maneco ou o responsável por criar oito personagens diferentes em Como Vai, Vai Bem?. Já ontem foi a vez do franco-argentino Jean Pierre Noher receber o Kikito de Cristal por sua carreira no cinema latino-americano.
O que mais chama a atenção nestas duas homenagens são: a) o fato do Festival celebrar figuras que normalmente não são celebradas: os coadjuvantes que todos nós conhecemos o rosto, mas nunca lembramos o nome. Isso é necessário: atores como Migliaccio e Noher já trabalharam com milhares de diretores, mas muitas vezes não ganham um grande papel ou o filme magistral que justifica uma homenagem; e b) os dois esbanjaram simpatia e disponibilidade, algo que diferencia a construção e mitificação de um artista. É óbvio que o cinema não deve ser relacionado a quem a pessoa é fora das telas (quantos atores insuportáveis na vida real são maravilhosos em cena?), mas sempre ajuda quando esbanjam humildade.
De um lado, Jean Pierre Noher, um apaixonado por Gramado e que diz dever toda a sua carreira no Brasil ao evento. Em 2001, ele recebeu uma menção honrosa por sua atuação em Um Amor de Borges, onde foi aplaudido em cena aberta. Na época, ainda não existia prêmio para atuação estrangeira e Noher foi quem pontuou essa mudança. De outro, Migliaccio, sempre muito humano, lembrando que desde pequeno já tinha a comédia misturada com o drama em sua vida quando o pai, que comandava sua família extremamente pobre, fazia brincadeiras até mesmo com a fome para aliviar a vida dos filhos. “Se a gente não brinca nessa vida, o mundo fica insuportável demais”, disse o ator, emocionado.
Curtas brasileiros e a crítica de cinema em El Crítico
Agora vamos aos filmes. A mostra de curtas brasileiros não tem me empolgado tanto quanto nos últimos anos. Dois até agora me marcaram mais: O Que Fica, de Daniella Saba, sobre uma mulher que recebe a visita de um pai ausente e seu cachorro paralítico; e Sem Título #1: Dance of Leifossil, que coloca Fred Astaire e Ginger Rogers a dançar ao som de um empolgante fado português em uma viagem super experimental. Tem ainda a animação O Coração do Príncipe, que se destaca por fazer algo muito interessante: contar um romance gay por meio de uma animação. De qualquer forma, nada que tenha me fisgado ou emocionado.
Quanto aos longas, foram dois. El Crítico, de Hernán Guerschuny, faz uma simpática viagem ao mundo dos críticos de cinema. Em alguns momentos, é quase simplista em suas análises e piadas em relação ao cinema (todo mundo sabe que o casal se beijando apaixonadamente no aeroporto ou na chuva é um grande clichê), mas tem a sua graça, principalmente porque mexe com esta figura tão difícil do crítico de forma humorada – e, eventualmente, reflexiva. Nada que seja revolucionário, mas um bom exemplar que define bem o cinema argentino.
A criativa sinfonia de Juliana Rojas
O que me marcou mesmo, porém, foi o primeiro trabalho solo da jovem Juliana Rojas na direção. Ela já havia feito Trabalhar Cansa em parceria com Marco Dutra e vários curtas, mas agora apresenta sozinha este Sinfonia da Necrópole. Só pelo “atrevimento” de fazer um musical brasileiro (gênero dificílimo, principalmente aqui) e ainda ambientá-lo quase que inteiramente em um cemitério (!) ela já merecia algum tipo de reconhecimento – e o que dizer, então, quando tudo dá certo? Rojas, vale lembrar, faz parte de um grupo que é bom acompanhar de perto: o Filmes do Caixote, que dois anos atrás esteve aqui em Gramado com o belíssimo e também inusitado O Que Se Move, de Caetano Gotardo.
“Se dói, é porque a gente tá vivo”, diz certo personagem consolando outro que acaba de passar por uma desilusão amorosa. Sinfonia da Necrópole se passa em uma cemitério, mas, no fundo, é um filme sobre a vida e suas transformações. O protagonista é um coveiro que não consegue conviver com os mortos e que eventualmente se apaixona por uma mulher que vem para reestruturar os túmulos do local. E Juliana Rojas toma a atitude mais esperta: transforma esta história em uma comédia – inteligente, claro – e não em um drama, justamente subvertendo a nossa cultura de tanto temer e dramatizar a morte.
Impossível não lembrar do seriado Six Feet Under neste sentido, que revolucionou a morte com um grande drama, é verdade, mas também com um humor muito peculiar. O meu maior medo – a parte musical – se revelou outra bela surpresa do filme. Tanto em termos de letra quanto de coreografia, Sinfonia da Necrópole é muito bem apurado. As rimas e a transição da cena realista para a musical são o ponto alto das canções, repletas de ritmo brasileiro (a Canção dos Coveiros, principalmente, inspirada nos clássicos de Adoniran Barbosa) e circunstâncias inusitadas (a Canção dos Mortos, encenada à noite, inevitavelmente lembrando Thriller, de Michael Jackson, referência que a própria Rojas diz que sempre tentou se esquivar).
É uma pena, entretanto, que Sinfonia da Necrópole seja para um público tão específico. Não é um problema do filme. A plateia brasileira em sua maioria é que não está preparada para esta experiência. É estranho, em tempos que tantas produções diferentes de nosso país ganham as salas de cinema, que, em um Festival, tantas pessoas digam que é difícil se conectar com o “estranhamento” do filme, mas é justamente disso que precisamos: de obras ousadas e que fujam do lugar comum. Rojas, com Sinfonia da Necrópole, entrega isto. Desde já, estou ansioso para rever a obra quando (e se) entrar no circuito comercial.