A gente tem que falar as coisas que a gente sente. Não adianta deixar guardado.
Direção: Daniel Ribeiro
Roteiro: Daniel Ribeiro
Elenco: Guilherme Lobo, Fabio Audi, Tess Amorin, Lúcia Romano, Eucir de Souza, Selma Egrei, Isabela Guasco
Brasil, 2014, Drama/Comédia, 106 minutos
Sinopse: Leonardo (Guilherme Lobo), um adolescente cego, tenta lidar com a mãe superprotetora ao mesmo tempo em que busca sua independência. Quando Gabriel (Fabio Audi) chega na cidade, novos sentimentos começam a surgir em Leonardo, fazendo com que ele descubra mais sobre si mesmo e sua sexualidade. (Adoro Cinema)
Eu Não Quero Voltar Sozinho é um curta-metragem de 2010 que ganhou diversos fãs por todo Brasil com sua temática delicada mas desenvolvida de forma bastante sutil. Na história, Leonardo (Guilherme Lobo) é um garoto cego que descobre em Gabriel (Fabio Audi) a sua primeira paixão. Além de sua própria deficiência, da dificuldade em lidar com esse novo sentimento e de admiti-lo para os que estão a sua volta, o garoto ainda precisa administrar a dinâmica com Giovana (Tess Amorin), sua colega e melhor amiga que secretamente nutre uma paixão por ele. O curta tinha a seu favor uma naturalidade absurda e uma “queridez” que o tornava simplesmente irresistível. Assim, quando o diretor Daniel Ribeiro anunciou que estava desenvolvendo um longa baseado nesta história, a expectativa logo se instalou. Particularmente, não queria criar tanta fé no projeto. Afinal, a essência do que Ribeiro tinha alcançado permaneceria intacta em um formato com duração cinco vezes maior que o original? A magia não seria diluída meio do caminho?
Não. Felizmente. O universo quase fabulesco de Leonardo permanece irretocável em Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, que atende plenamente as expectativas dos fãs do curta e também dos que embarcam na história pela primeira vez. É inspirador como Daniel Ribeiro dá uma verdadeira aula ao transpor o seu curta para o formato de longa sem perder absolutamente nada nessa mudança. É perfeita a precisão com que o diretor transfere todas as situações e discussões do curta para este maior espaço de cinema sem cair no erro de bater demais na mesma tecla ou prolongar desnecessariamente determinadas temáticas. O que acompanhamos em Hoje Eu Quero Voltar Sozinho é um verdadeiro sopro de humanidade, uma mostra de como a arte pode nos inspirar a renovar a fé nas relações humanas – especialmente em tempos tão virtuais e de dinâmicas tão efêmeras. Porém, antes de mais nada, este é um filme sobre o amor. Em qualquer forma. Isso porque o amor apresentado pelo diretor não é visto; é apenas sentido. Leonardo não vê Gabriel, o que nos remonta à ideia tão negada nos dias de hoje de que o amor não escolhe sexo ou aparência. O amor é descoberta, entendimento, companheirismo. Independente de sua origem.
São muitos os momentos de Hoje Eu Quero Voltar Sozinho que exemplificam o amor “natural” de maneira emocionante. Um ponto alto é certamente a passagem onde Leonardo veste apenas o esquecido moletom do colega, sentindo o seu cheiro e imaginando o seu toque. Nas mãos de outro diretor, tal cena poderia cair em um erotismo descabido ou em um clichê abundante. Não com Ribeiro, que imprime uma humanidade perfeitamente identificável a todos nós nesse momento. Afinal, quem nunca relembrou secretamente um grande amor por meio de um cheiro ou de um objeto? Ou seja, por mais que Hoje Eu Quero Voltar Sozinho se utilize de um terreno extremamente suscetível a erros para narrar tal história (as possibilidades de clichês são muitas: a vida colegial, a discussão da deficiência, a superproteção da família), o roteiro escrito pelo próprio diretor consegue o feito de narrar cada cena com uma naturalidade invejável. Até mesmo a nudez de Gabriel e Leonardo em uma cena no vestiário surge delicada e com nenhum outro tom a não ser o sentimental. E, nesta missão, o elenco tem uma imensa parcela de contribuição, onde todos defendem seus papeis com uma desenvoltura que muitos atores com anos de carreira procuram e nunca encontram.
Só que é limitado definir Ribeiro como um excelente diretor de elenco ou como um sujeito mais afeito ao sentimento do que a técnica. Sim, ele extrai beleza e humanidade de cada situação corriqueira do dia a dia e de questões complexas como a deficiência e a homossexualidade. Mas também também é um cineasta atento a todas as ferramentas que possam tornar a história ainda mais imersiva. Basta perceber a cena que introduz Gabriel na trama, por exemplo. Quando o garoto abre a porta da sala de aula perguntando se aquela é a turma em que ele deveria estar, a câmera não está focando na porta, e sim no ouvido do protagonista, capturando intimamente a primeira vez que o garoto entra em “contato” com aquele que posteriormente se tornará o primeiro amor de sua adolescência isolada e virgem em todos os sentidos. Hoje Eu Quero Voltar Sozinho ainda acerta ao não se dedicar inteiramente a uma história de amor. Há espaço para as questões individuais do jovem Leonardo, que, como o próprio título denota, quer buscar seu caminho e construir uma identidade ao mesmo tempo em que busca a compreensão de um mundo que não pode ver. Um mundo que, para ele, existirá com ou sem a realização de um amor.
As fragilidades estão eventualmente presentes, assim como é fácil perceber que o filme toma certas liberdades e que muitos momentos são sustentados quase exclusivamente em função desse clima simplesmente irresistível e adorável. A escolha de não terminar o filme em uma cena emblemática (que poderia se assemelhar à estrutura do curta) para continuar um pouco mais afim de atender à óbvia necessidade dar um final feliz a todos ou de fazer a piadinha final contra o “vilão” para fazer a plateia sair do cinema de alma inteiramente lavada chega a ser quase um deslize comercial para um filme tão bem resolvido em sua construção. Entretanto, a verdade é que Hoje Eu Quero Voltar Sozinho ganha tanto o coração do espectador que é preciso estar muito de mal da vida para diminuí-lo por causa disso. Sem exageros, este é um marco no cinema brasileiro contemporâneo. Um filme para fazer história, ensinar, humanizar, quebrar preconceitos. E melhor ainda: mostrar que é possível fazer tudo isso sem qualquer medo, com a maior simplicidade e franqueza possível. Uma beleza singular que merece ser vista, revista e aplaudida. “Ué, mas você não gosta da sua personalidade?”, pergunta Giovana. “Gosto, mas o problema não sou eu”, responde Leonardo. Que Hoje Eu Quero Voltar Sozinho seja, então, uma forma de resolver o problema dos “outros” e de fazê-los refletir sobre os conceitos e preconceitos que cultivamos. Afinal, a arte só passa a ter sentido a partir dessa troca com o espectador.
Kamila, procure ver o curta – nele, a história já é encantadora! No longa, ficou ainda melhor!
Não assisti ao curta que originou o filme, o qual é bastante cultuado na Internet. Quero fazer isso antes de assistir a “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho”. Pretendo assistir ao filme, que tem sido elogiadíssimo, neste final de semana.