
A eutanásia é um inevitável paradoxo, pois o desejo pela morte celebra, na verdade, a vida — aquela vivida com dignidade, autonomia e consciência. Gilda (Denise Fraga), que enfrenta uma doença terminal e tem apenas um ano de vida pela frente, simboliza muito bem essa dicotomia, especialmente por carregar franquezas e cinismos que servem de norte para a construção de Sonhar com Leões, filme rodado em Portugal e na Espanha pelo diretor Paolo Marinou-Blanco e que faz sua estreia brasileira na competição do 53º Festival de Cinema de Gramado.
Em tom de tragicomédia, o longa se arrisca do início ao fim, misturando elementos como a quebra de quarta parede, o uso do humor para falar de assuntos complicadíssimos, a busca pela seriedade sem apelar para alguma cartilha temática e a costura da realidade com situações surreais. São ideias que, se transpostas do papel para as telas de forma torta, poderiam resultar em desastre, mas que Marinou-Blanco equilibra com imenso êxito. Em suas mãos, Sonhar com Leões se torna uma obra criativa, instigante e capaz de driblar uma série de armadilhas.
Há diálogos claros que o filme estabelece com outras produções de mesmo tema — impossível não lembrar, por exemplo, de longas como Ensina-Me a Viver, A Partida e o recente O Quarto ao Lado, ou do antológico seriado Six Feet Under —, e Sonhar com Leões ainda encontra espaço para atualizar o debate, colocando, por exemplo, a vida/morte de Gilda diante das contradições capitalistas atuais — como ela própria diz, hoje em dia há multinacional para tudo, inclusive para morrer ou para se ter uma morte de luxo.
A comédia em momento algum desrespeita ou minimiza tudo o que Sonhar com Leões abarca. Por sinal, acreditar que o gênero se prestaria automaticamente a isso é um erro tacanho. Comédias podem muito bem tratar sobre questões difíceis da vida com inteligência e humanidade, tese que Denise Fraga costuma trabalhar à perfeição em sua carreira no teatro, no cinema e na televisão. Por isso que sua presença como protagonista é tão simbólica: à parte toda emoção e técnica inerentes ao repertório da atriz, ela lapida aqui essa sua investigação sensível e perspicaz de como a risada nos é profundamente familiar.
Uma parcela do que Sonhar com Leões faz de admirável está em como a jornada da protagonista se modifica também na forma: de início adotando a quebra da quarta parede para evidenciar como Gilda só tem o espectador como confidente, o filme se desfaz desse artifício na medida em que o jovem Amadeu (João Nunes Monteiro) chega como um novo elo em sua vida. Juntos, eles embarcam em uma jornada transformadora e que reserva boas surpresas na discussão sobre o que significa estar realmente vivo. Tudo sem moralismos, não-me-toques ou, parafraseando o próprio longa, pena.
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