
É no mínimo inspirador quando nos deparamos com obras que ressignificam abordagens e invertem a lógica de temáticas já tão desgastadas ou estereotipadas na arte. Vejam Nó, por exemplo, que abre a mostra competitiva de longas-metragens brasileiros do 53º Festival de Cinema de Gramado. No filme de Laís Melo, a classe trabalhadora é vista pelos olhos de Glória (Saravy), mulher há pouco divorciada e que, enquanto tenta fazer da nova casa um lar, ainda enfrenta, no chão da fábrica, a delicada disputa por uma vaga de supervisora entre colegas e sua melhor amiga. Há um pouco de tudo em Nó — o cansaço materno, a ausência masculina, as pequenas hostilidades do trabalho, as impossibilidades financeiras —, exceto o caminho da miséria ou da estilização do sofrimento.
Nas palavras da própria diretora, o filme se apresenta como “um cinema que não é ocupado pela masculinidade cisgênera”, mas vai além: é também um cinema que não procura discursos ou lições prontas de moral. Com grande delicadeza, o roteiro assinado por Melo e pela protagonista Saravy mergulha nas vivências familiares a partir de um viés feminino que busca a estética da dignidade. Glória tem uma vida bagunçada, mas, de algum jeito, tudo também está no lugar. Ela e as filhas passam por momentos difíceis, o que, ao mesmo tempo, não é motivo para a falta de aconchego. E se há disputa no trabalho, ela não abala a relação entre duas pessoas que, nas dificuldades laborais, encontram identificação e acolhimento. Movendo o foco do desespero para o afeto, Nó se cristaliza.
A câmera de Laís Melo é sucinta em movimentos e transições para exercitar a observação das personagens. Elas fluem em cena livres e com naturalidade, também em função da ótima direção de atores e principalmente da performance de Saravy, impecável na verossimilhança e na sensibilidade com que abraça uma personagem fiel à vida real. Sua performance naturalista e sem qualquer vaidade — destaque para a cena do depoimento na audiência ao qual seu ex-marido não comparece — traz beleza a um relato afeito a cotidianidades em detrimento de fatos ou reviravoltas. Por isso mesmo, a metáfora dos “nós” que aparecem no corpo da protagonista em forma de nódulos parece apenas uma distração. Não só ela pouco acrescenta ao que já sabemos sobre a personagem como não surte a potência esperada, especialmente se considerarmos seu holofote no título e na intenção de construir um pequeno grand finale.
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