TIFF 2024, #11: “Bird”, “Flow”, “Nightbitch” e “Queer”

flowtiff

BIRD (idem, 2024, de Andrea Arnold): É o tipo de história que me comove e que a diretora Andrea Arnold (Cow, Docinho da América) aborda com melancolia e esperança: a de pessoas comuns sufocadas pelas dificuldades e pelo abandono da vida, mas que, mesmo assim, seguem em frente, quem sabe encontrando algum tipo de pertencimento. Neste caso, a protagonista Bailey (Nykiya Adams, uma revelação) procura, em outros lugares, a atenção que não recebe em casa do pai e do irmão. Lá pelas tantas, encontra Bird (Franz Rogowski), que também vive solitário em uma busca pessoal. Não demora para que Bailey e Bird passem a se reconhecer em suas ausências e lacunas, algo que Arnold explora com muita delicadeza. Por vezes, o longa tateia várias questões e tons sem necessariamente conseguir abordar todos com a devida unidade, mas Arnold conhece bem seus personagens e dilemas, tornando tocante os momentos mais simples, como aquele em que em que um grupo de homens embriagados canta Yellow, do Coldplay. Entre estranhezas e sinceridades, Bird é maduro na sua análise da juventude colidindo com a vida adulta. Contudo, tem seus melhores contornos quando adentra a generosidade entre Bailey e Bird. O próprio surrealismo empregado à maneira como a primeira eventualmente enxerga o segundo se constrói em cima de pura compaixão e esperança. Não por acaso, o filme termina com um otimismo agridoce que está, sim, impresso em palavras, mas que, em última instância, emociona mesmo é no silêncio e no quanto uma certa alegoria expõe um florescimento conquistado em cima de pequenas grandes batalhas.

FLOW (idem, 2024, de Gints Zilbalodis): Enquanto o duo Disney-Pixar continua obcecado em produzir live actions e sequências de seus filmes mais queridos, uma produção independente como Flow é um verdaeiro frescor. Vinda da Letônia, a animação se concentra na jornada de um gato solitário em meio a uma grande inundação de traços pós-apocalípticos. Para sobreviver, ele precisa conviver com outras espécies, desafiando sua convivência com as diferenças em todos os sentidos. De visuais que a revista Rolling Stone categorizou como muito semelhantes a de jogos de videogame como Zelda, Flow encontra beleza ao fugir do hiper-realismo cada vez mais desejado por grandes estúdios em suas técnicas de animação. O diretor Gints Zilbalodis prioriza outras que fazem toda a diferença, como a de não antropomorfizar os personagens. Gatos são apenas gatos. Cachorros são apenas cachorros. E eles se comportam como tais. Sem diálogos, Flow, portanto, explora a dinâmica dos animais a partir de suas características específicas, o que torna tudo instigante, principalmente porque gatos são seres tão curiosos quanto desconfiados, receita perfeita para esse mundo desconhecido em que o filme se passa. Zilbalodis, que escreve o roteiro ao lado de Matiss Kaza, proporciona sequências sublimes e divertidas, a partir de uma trama que deixa de lado grandes aventuras para se focar em aspectos básicos de uma luta por sobrevivência. Sempre é possível contar uma mesma história a partir de outras perspectivas. Merecidamente, Flow teve sua estreia mundial na prestigiada mostra Un Certain Regard do último Festival de Cannes.

NIGHTBITCH (idem, 2024, de Marielle Heller): Menos “estranho” do que o esperado, Nightbitch traz Amy Adams em um tipo de papel que, por diversas vezes, me remedeu a Tully, de Jason Reitman, o que, no meu caso, é excelente sinal. Dando vida a uma mãe sem nome, Adams parte da perspectiva muito realista de que a maternidade está longe de ser um mar de rosas — na verdade, é um dos períodos mais desafiadores da vida de qualquer mulher. Só que Nightbitch trabalha essa temática com outros contornos na medida em que a personagem abraça gradativamente o comportamento instintivo e, vez ou outra, selvagem enraizado na maternidade, considerando a ideia de que talvez esteja se transformando em um cão. Com isso, claro, o longa começa a ganhar traços mais surrealistas, algo bem dosado pela diretora e roteirista Marielle Heller (Poderia Me Perdoar?, Um Lindo Dia na Vizinhança). O fato de Nightbitch ser um bom entretenimento com uma proposta, digamos, atípica é importante porque mostra como Heller tem grande habilidade ao não deixar que o filme se torne inconvincente nos paralelos traçados entre a maternidade e os instintos caninos, muito menos que exponha os envolvidos a representações constrangedoras. Ao mesmo tempo, por justamente não se arriscar tanto nas possibilidades mais fantasiosas da transformação da personagem, o resultado perde a oportunidade de alçar certos voos. A verve que, de certo modo, falta ao filme pelo menos é equilibrada pela presença de Amy Adams, que se diverte e aproveita um frescor que não tem sido lhe oferecido muita frequência  em trabalhos recentes.

QUEER (idem, 2024, de Luca Guadagnino): O público que conhece apenas o Luca Guadagnino em função do hype de Me Chame Pelo Seu Nome e Rivais certamente sairá frustrado de Queer, o mais novo longa-metragem do diretor centrado em uma história de amor gay. Ambientado na Cidade do México dos anos 1940, o filme acompanha um expatriado americano que se apaixona por um homem muito mais jovem, embarcando em uma jornada de desejos reprimidos, vícios e a incomunicabilidade do amor. Queer, entretanto, é um dos trabalhos menos impactantes de Guadagnino, mesmo com uma performance marcante da carreira de Daniel Craig. O roteiro escrito por Justin Kuritzkes, com base no romônimo de William S. Burroughs, vai muito bem na primeira metade, quando se debruça em um minucioso estudo de protagonista e em como ele tem sua vida transformada pelo jovem Eugene (Drew Starkey). Inexplicavelmente, tudo vai por água abaixo a partir do momento em que Queer leva os personagens para a América do Sul em busca de ayahuasca. A viagem tira o filme de todos os eixos, inclusive do erotismo maduro e orgânico contruído até ali, pois Guadagnino entra demais nos efeitos alucinógenos e na loucura do vício. É uma estranheza que não tem efeito de imersão e que esvazia tudo o que Queer tinha de melhor, além de cometer o crime de desperdiçar uma grande atriz como Lesley Manville, ainda que ela, em um primeiro momento, reafirme a sua inegável versatilidade. Depois do empolgante Rivais, Guadagnino decepciona vertiginosamente.   

Deixe um comentário