
E se um diretor francês resolvesse misturar, em um musical ambientado no México, diferentes histórias envolvendo dramas familiares, crimes de cartel, dilemas da transgeneridade e reflexões sobre a avassaladora mutilação causada pela banalização da criminalidade em uma sociedade? E se ele resolvesse também colocar quatro atrizes, entre elas uma jovem estrela da música pop e uma atriz trans sem experiência musical, para soltarem a voz em espanhol nos cenários mais inusitados, como em um consultório médico ou em cima das mesas de um luxuoso jantar de gala? Como bem costuma acontecer, a mistura de tantas ideias e tantos pontos fora da curva poderia resultar em um filme esquizofrênico, fora do tom e que, ao tentar ser muitas coisas, acaba não sendo coisa alguma. É uma estatística que não se aplica a Emilia Pérez, um verdadeiro acontecimento por escapar habilidosamente de todos os riscos que assumiu e por trazer um diretor já consagrado — Jacques Audiard, de O Profeta, Ferrugem e Osso e Dheepan: O Refúgio — brilhando no tipo de reinvenção que marca uma carreira.
Como um representante do gênero musical, o longa é uma verdadeira oxigenação, a começar pelo fato de ser ambientado totalmente fora do eixo Hollywoodiano, indústria onde o gênero se popularizou por excelência. Por melhores que sejam, nem juntos e somados os musicais norte-americanos mais recentes se aproximam do esmero estético e narrativo de Emilia Pérez. A partir das canções compostas pela dupla Camille Dalmais e Clémont Ducol (ela, aliás, escreveu e deu voz à bela Le Festin, de Ratatouille), Jacques Audiard é ambicioso ao criar os números musicais do filme, que acontecem em situações aparentemente inusitadas, mas logo cobertas de sentido. Não lhe falta assertividade para incorporar esses momentos à trama de maneira orgânica, sem que eles pareçam clipes avulsos na trama. As músicas de Emilia Pérez, todas afeitas à narrativa e não às meras rimas chicletes, dizem muito sobre suas personagens, ao mesmo tempo em que lançam a história para frente com ritmo, interesse e deslumbre técnico. Dirigir musicais não é pra qualquer um e, às vezes, nem para os mais talentosos, o que só aumenta os méritos de Audiard nessa complexa costura.
Escrito pelo próprio diretor, o longa começa de um jeito, modifica-se nas subtramas e se ramifica em várias personagens, mas encontra mesmo o seu cerne afetivo e dramático na figura, claro, da protagonista, vivida por Karla Sofia Gascón. O tocante do roteiro está em como Audiard não faz da transgeneridade de Emilia uma curiosidade ou a única razão do filme existir. Se, por um lado, inevitavelmente, há todo o processo da personagem transicionando para sua nova identidade, por outro, Emilia Pérez se utiliza dessa jornada particular para contar uma história de redenção, tanto da personagem com ela própria quanto dela perante seus incontáveis erros do passado que destruíram vidas e mais vidas. Não se trata de uma visão idealizada ou poliana de recomeço: Audiard constrói uma personagem com camadas conflitantes e, através delas, promove um olhar específico sobre o próprio México, terra em que o tráfico deixa incontáveis mães sem a possibilidade de encontrar os corpos de seus filhos desaparecidos. É uma dignidade que Emilia Pérez traz, em grande escala, para um tema pouco visibilizado mundialmente.
Inclusive, Gascón é maravilhosa como a personagem-título, do deslumbre causado por sua inegável presença até as próprias variações de uma mulher às voltas com uma nova vida ainda muito conectada ao passado. Com outras três atrizes do filme, ela venceu um prêmio merecidíssimo de interpretação feminina no último Festival de Cannes. Dividiram a láurea: Zoe Saldaña, que, dona dos melhores números musicais, apresenta uma vitalidade e uma versatilidade talvez nunca antes vistas em sua filmografia; Selena Gomez, cada vez mais comprometida como atriz e excelente ao nunca tornar sua personagem o clichê da garota aparentemente frágil, mas com outras facetas a serem descobertas; e Adriana Paz, que, com tempo consideravelmente menor em cena, chega no terço final da trama trazendo uma sensibilidade muito bonita para a jornada da protagonista. As quatro, com diferentes estilos de interpretação e instintos complementares para a questão musical, solidificam todas as qualidades da produção.
Emilia Pérez desenha um grande novelão mexicano — aliás, franco-mexicano — no melhor sentido dessa comparação. O terço final, especificamente, leva todas as personagens às últimas consequências após uma série de erros, mentiras, traições e disputas de poder. Não teria como ser diferente. Pelo menos não no universo de Emilia Pérez. E isso está longe de ser um problema porque o filme tem, repito, um notável domínio das tantas coisas que poderiam sair do controle, inclusive do ponto de vista musical, como privilegiar Selena Gomez, a cantora pop do elenco, no número de canções, o que definitivamente não acontece. Com orçamento e escalas maiores do que as de qualquer outro título de sua carreira, Audiard não sucumbe à avidez para impressionar. Trata-se do oposto: Emilia Pérez impressiona, justamente, por ter um diretor que compreende como criatividade, foco e rigor, quando combinados, nunca estarão a mercê de qualquer outra distração ou vaidade que o cinema possa oferecer pelo caminho.
EMILIA PÉREZ REVIEW
What if a French director decided to mix, in a musical set in Mexico, different stories involving family dramas, cartel crimes, transgender dilemmas, and reflections on the overwhelming mutilation caused by the trivialization of criminality in society? And what if he also chose to have four actresses, including a young pop star and a trans actress with no musical experience, sing in Spanish in the most unexpected settings, like in a doctor’s office or on top of tables at a lavish gala dinner? As often happens, the blend of so many ideas and such out-of-the-box elements could result in a schizophrenic, off-key film that, in trying to be many things, ends up being nothing at all. However, this is a statistic that does not apply to Emilia Pérez, a true cinematic event for skillfully escaping all the risks it took, and for showcasing an already established director – Jacques Audiard, of A Prophet, Rust and Bone, and Dheepan – shining through the kind of reinvention that defines a career.
As a representative of the musical genre, the film is a breath of fresh air, starting with the fact that it is entirely set outside the Hollywood axis, the industry where the genre gained its excellence. As good as they are, even combined, recent North American musicals don’t come close to the aesthetic and narrative refinement of Emilia Pérez. With songs composed by the duo Camille Dalmais and Clément Ducol (she, by the way, wrote and voiced the beautiful “Le Festin” from Ratatouille), Jacques Audiard ambitiously creates the film’s musical numbers, which occur in seemingly unusual situations but soon become full of meaning. He deftly incorporates these moments into the plot in an organic way, ensuring they don’t feel like random music videos within the narrative. The songs in Emilia Pérez, all tied to the story rather than catchy rhymes, speak volumes about the characters, while also driving the plot forward with rhythm, intrigue, and technical brilliance. Directing musicals isn’t for everyone, and sometimes not even for the most talented, which only heightens Audiard’s merits in this complex craft.
Written by the director himself, the film starts in one way, shifts with subplots, and branches out into various characters, but ultimately finds its emotional and dramatic core in the figure of the protagonist, of course, played by Karla Sofia Gascón. The touching aspect of the script lies in how Audiard does not make Emilia’s transgender journey a mere curiosity or the sole reason for the film’s existence. While, on one hand, there is inevitably the process of the character transitioning to her new identity, Emilia Pérez uses this personal journey to tell a broader story of redemption – both of the character with herself and of her reconciling with the countless mistakes of her past that destroyed lives. This is not an idealized or naive vision of starting over: Audiard constructs a layered character, and through her, offers a specific perspective on Mexico itself, a land where trafficking leaves countless mothers without the possibility of finding the bodies of their missing children. Emilia Pérez brings dignity, on a grand scale, to a topic that is largely underrepresented globally.
Gascón, by the way, is wonderful as the title character, from the awe inspired by her undeniable presence to the personal struggles of a woman entangled in a new life still very connected to the past. Alongside the film’s other three actresses, she won a well-deserved Best Actress award at the last Cannes Film Festival. Sharing the prize were: Zoe Saldaña, who, with the best musical numbers, shows a vitality and versatility perhaps never before seen in her career; Selena Gomez, increasingly committed as an actress and excellent at never turning her character into the cliché of the seemingly fragile girl with hidden facets waiting to be discovered; and Adriana Paz, who, with considerably less screen time, arrives in the final third of the film bringing a beautiful sensitivity to the protagonist’s journey. The four actresses, with different acting styles and complementary instincts for the musical elements, solidify all the strengths of the production.
Emilia Pérez paints a grand Mexican – or rather, Franco-Mexican – melodrama, in the best sense of the comparison. The final third, in particular, drives all the characters to the ultimate consequences after a series of mistakes, lies, betrayals, and power struggles. It couldn’t be any other way. At least not in the world of Emilia Pérez. And this is far from being a problem because the film, as mentioned before, has a remarkable command of all the elements that could have spiraled out of control, including the musical aspect, such as favoring Selena Gomez, the pop singer in the cast, with more songs, which definitely does not happen. With a larger budget and scope than any other film in his career, Audiard does not succumb to the temptation to impress. Quite the opposite: Emilia Pérez impresses precisely because it has a director who understands how creativity, focus, and precision, when combined, are never at the mercy of any other distractions or vanities that cinema might offer along the way.
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