Independent Spirit Awards 2024: “Todos Nós Desconhecidos”, de Andrew Haigh

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Fantasmas podem ser assustadores, principalmente aqueles que carregamos conosco. Não falo aqui sobre questões sobrenaturais, mas sim íntimas. Afinal, como não encarar como fantasmas as coisas mal resolvidas de um passado, os afetos nunca recebidos daqueles que deveriam concedê-los, ou as relações repletas de confissões não feitas e sentimentos reprimidos? É o tipo de história que me interessa demais, e que Todos Nós Desconhecidos destrincha com louvor.

Andrew Haigh talvez tenha realizado aqui o seu filme mais pessoal, o que não é pouca coisa se levarmos em consideração que ele já assinou pérolas como 45 Anos. Aqui, ele retorna ao universo gay sem mimetizar Weekend, seu ótimo trabalho de estreia na direção de longas-metragens. Pelo contrário: é nítido como Haigh se mostra versátil em estilo e discussões, dessa vez centrado em um protagonista “assombrado” pelas bases afetivas mal resolvidas de sua vida.

Como acontece com cada um de nós, Adam (Andrew Scott) é, em todos os sentidos e para o bem ou para o mal, fruto da criação que recebeu dos pais. Ambos ainda estão muito vivos em sua memória, a ponto de reaparecerem para ele como fantasmas, mas com uma diferença crucial: o casal parece ter parado no tempo, há exatos 30 anos, quando Adam ainda era uma criança a caminho da adolescência — período delicadíssimo para quem se descobre gay.

Ao reencontrar os pais, ele revisita uma série de silêncios que Todos Nós Desconhecidos trata magistralmente como atemporais. O silêncio de Adam é um deles: quando pequeno, chorava sozinho no quarto por ter a sua sexualidade zombada. Por outro lado, o silêncio vivido em casa machucava em dobro, uma vez que o pai (Jamie Bell) sabia que algo estava  errado com o filho ao ouvi-lo chorar, mas era incapaz, à época, de abrir a porta e oferecer-lhe um abraço ou uma palavra de conforto. A cena em que ambos conversam sobre essa cicatriz, com certa perspectiva, é de partir o coração.

O adulto que desaba chorando ao conversar com o pai sobre a importância de um abraço  é o mesmo que precisa ser firme e quase didático com uma mãe que, embora cuidadosa com as palavras e os gestos, veladamente associa a homossexualidade à epidemia da AIDS, por exemplo. Também autor do roteiro baseado no romance Strangers, de Taichi Yamada, Haigh navega por essas questões com maturidade, levando-as para o plano emocional, sem parecer que está colocando o protagonista em um acerto de contas com o passado.

A dor de Adam está em compreender o quanto certas coisas tão triviais para garotos heterossexuais lhe foram negadas enquanto descobria sua homossexualidade — e, principalmente, em entender que essas marcas são profundas e ecoam por toda a vida. É aí que a presença de Harry (Paul Mescal), um vizinho aparentemente tão solitário quanto Adam, chega para fazer essa ponte entre passado e presente. Por meio da relação entre os dois, Todos Nós Desconhecidos explora, então, os efeitos do passado na forma como Adam se relaciona, desde a hesitação em começar uma simples conversa com um estranho até a entrega, que parece ter sabor extra exatamente por ser tão difícil.

Os dilemas do longa são ancorados em uma performance formidável de Adam Scott, a melhor de sua carreira até o momento. É impecável a habilidade com que ele explora tanto a maturidade de um homem marcado pelo passado quanto a fragilidade de alguém que, lá no fundo, talvez ainda seja um garoto precisando de carinho. Complementando o desempenho de Scott, todos os coadjuvantes têm momentos de brilho, como os pais vividos por Claire Foy e Jamie Bell, e o próprio Paul Mescal na pele do vizinho que se torna um importante interesse romântico.

Sendo, portanto, um filme sobre fantasmas internos, Todos Nós Desconhecidos sublinha o nome de Andrew Haigh como um dos mais interessantes da sua geração. Aqui, inclusive, Haigh se permite explorar mais a questão estética, com resultados frequentemente melancólicos ou visualmente impressionantes. A sequência passada em uma festa captura, através das imagens, a importância daquele momento para Adam, assim como a cena final ao som de The Power of Love garante a emoção necessária para o desfecho. Mais uma vez, fico na expectativa para o que ele nos reserva em seu próximo trabalho.

INDICAÇÕES AO INDEPENDENT SPIRIT AWARDS 2024:
– Melhor filme
– Melhor direção
– Melhor performance protagonista (Andrew Scott)

Um comentário em “Independent Spirit Awards 2024: “Todos Nós Desconhecidos”, de Andrew Haigh

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