“Monster”: os ruídos e os sofrimentos causados por vidas vividas em silêncio

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Direção: Hirokazu Kore-eda

Roteirista: Yûji Sakamoto

Elenco: Soya Kurokawa, Sakura Ando, Eita Nagayama, Hinata Hiiragi, Mitsuki Takahata, Akihiro Kakuta, Shidô Nakamura, Yûko Tanaka

Kaibutsu, Japão, 2023, Drama, 127 minutos

Sinopse: Uma mãe sente que há algo errado quando seu filho começa a se comportar de maneira estranha. Ao descobrir que um professor é o responsável, ela vai até a escola exigindo saber o que está acontecendo. Enquanto o caso se desenrola pelos olhos da mãe, do professor e da criança, a verdade começa a surgir.

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* Atenção! O texto abaixo contém spoilers envolvendo detalhes centrais do filme.

Por definição, empatia é capacidade de se identificar com outra pessoa, de sentir o que ela sente, de querer o que ela quer. Para praticá-la, uma mudança no nosso ponto de vista se faz necessária, de modo que enxerguemos o mundo com outra perspectiva, tarefa nem sempre fácil ou natural. As belezas, os dramas e os mistérios desse ato são a força motriz de Monster, trabalho mais recente do cineasta japonês Hirokazu Kore-eda (Assunto de Família), pois, justamente, três pontos de vista diferentes fecharão o círculo de uma trama  sobre os estranhos comportamentos de uma criança e a busca de sua mãe por compreender o que está acontecendo.

O roteiro escrito por Yûji Sakamoto rejeita a estrutura clássica de apenas reencenar os mesmos acontecimentos e faz algo bem mais interessante, repetindo a mesma linha temporal, mas seguindo as vivências de outros personagens até então conhecidos apenas superfialmente, até que, em pontos específicos, as histórias finalmente se cruzam e se complementam. No terreno do mistério, isso não poderia ser mais intrigante, pois os pontos parecem impossíveis de ser conectados, em uma estrutura que desafia nosso senso de investigação com inteligência.

Ainda que envolvo em um mistério a ser resolvido, Monster não é um suspense. Muito menos se levarmos em consideração as reconhecidas vocações de Hirokazu Kore-eda. A partir do roteiro de Sakamoto, ele planta as incógnitas com seu habitual estilo naturalista, dando especial atenção à construção dos personagens e a como a dinâmica entre eles, da mise-em-scène aos diálogos, pode contribuir para a nossa conexão emocional. Não há alardes ou reviravoltas policialescas, mas, sim, dúvidas sobre o comportamento humano e sobre o que pode estar sob a superfície de uma vida tão cotidiana.

Por isso mesmo, fico surpreso com quem se diz frustrado com a resolução, afinal, qualquer coisa diferente desse teor soaria no mínimo contraditório com o próprio cinema de Kore-eda. A chegada do terceiro ato, aliás, só confirma o quanto Monster é definitivamente uma obra assinada por ele. Após termos acompanhado a perspectiva da mãe em relação aos comportamentos estranhos de seu filho e depois a do professor que parece ser uma figura central no conflito, enfim o roteiro introduz as resoluções a partir dos olhos de Minato (Soya Kurokawa) e como a sua verdade passava despercebida.

Ao conhecer o colega Yori (Hinata Hiiragi), Minato inicialmente vive uma improvável amizade, até perceber que, talvez, ele esteja sendo pego de surpreso por uma relação que transcende a amizade para pousar em um outro tipo de afeto, quem sabe o primeiro de uma natureza nunca experimentada por ele até então. Isso desencadeia tanto uma grande confusão interna em Minato quanto uma série de atitudes que, aí entendemos, explicam os desentendimentos e os mistérios construídos pelo longa.

Pela proximidade de lançamento, podemos dizer que Monster é um filme-irmão do belga Close, outro relato sobre crianças tateando seus primeiros afetos e carregando o peso de vivê-los em segredo em função do julgamento alheio da sociedade. A diferença é que, enquanto Close usa esse contexto como ponto de partida para uma jornada crua e dolorosa, Monster o abraça com lirismo para ressignificar um entorno que tomávamos como nossa única referência.

A revelação inunda o filme com a sensibilidade tão característica do diretor, e é aí que entra o convite definitivo à empatia. Por meio do universo particular de Minato e Yori, carregamos esse mesmo peso contido no ato de viver algo tão puro às escondidas, mas também lembramos do quanto nunca saberemos tudo sobre o outro, por mais íntimo ou familiar que esse alguém possa parecer. Se o próximo sempre será, de certa maneira, um mistério aqui ou ali, só pode ser pretensão nossa acreditar que temos todos os fatos sobre tudo.

A emocionante trilha sonora do saudoso mestre Riuyichi Sakamoto dá o tom perfeito para o segmento final de Monster — esse, aliás, foi seu último trabalho antes de falecer em março de 2023, tendo composto apenas dois temas devido ao seu estado frágil e cedido os direitos autorais de um outro álbum seu para que Kore-eda pudesse completar o que não conseguiu entregar. Ela traz uma delicada melancolia para a parte do longa sobre o universo particular de Minato e Yori. O convívio entre os dois é de uma beleza singular — e bastante triste por acontecer às escondidas, envolto em receio e causador de tantos desentendimentos.

Quando as peças se encaixam, Monster nos reserva sequências tocantes, como a conversa entre Minato e a diretora da escola, em que ela faz a afirmação mais contundente do longa: “Se só alguns podem ter, então não é felicidade”. E, assim, Kore-eda vai filmando lindamente até o final, compreendendo as delicadezas daquela relação e as emoldurando também com um tom solar. O desfecho, em especial, é arrebatador de tão bonito, inclusive porque coloca o espectador a interpretar qual terá sido o destino dos personagens. É um lirismo dos mais tocantes e que encerra Monster em seu ponto máximo.

2 comentários em ““Monster”: os ruídos e os sofrimentos causados por vidas vividas em silêncio

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