A coluna “Três atores, três filmes” foi inaugurada em abril de 2013 para trazer ao blog queridos amigos comentando interpretações que consideram marcantes no cinema. Passados sete anos, chego agora ao convidado número 50 com o imenso orgulho de, ao longo dessa trajetória, ter também incorporado ao espaço colegas do jornalismo, profissionais do cinema e até mesmo atrizes e cineastas de quem sempre fui muito fã. Para marcar a 50ª edição da coluna, trago a participação do jornalista gaúcho Daniel Feix. Mestre em comunicação, crítico de cinema, editor dos suplementos de fim de semana do jornal Zero Hora e atual presidente da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS), Daniel é jornalista cultural desde 2000 e tem artigos publicados na série “Os 100 melhores”, da Associação Brasileira dos Críticos de Cinema (Abraccine), em “Bernardet 80” (Paco Editorial) e “Cem autores que você precisa ler” (L&PM), entre outros livros, além de ser autor da biografia “Teixeirinha – Coração do Brasil”. Lembro de, ainda na faculdade, tê-lo entrevistado sobre, claro, crítica de cinema. Anos depois, nos tornamos colegas de jornalismo. Hoje, tenho a grande satisfação de estar junto ao Daniel na ACCIRS — aliás, foi durante sua bela gestão como presidente que recebi o convite para integrar o time de críticos dessa importante associação. Cumprindo o desafio proposto pela coluna, ele selecionou desempenhos que engrandecem três filmes assinados por cineastas icônicos: Ingmar Bergman, Jean-Luc Godard e Wong Kar-Wai. Obrigado pela participação, Daniel!
Tony Leung (Amor à Flor da Pele)
Entre os muitos bons filmes que têm como tema a impossibilidade da realização amorosa, Amor à Flor da Pele talvez seja um dos mais exasperadores – daí o sentido de suas cores quentes, sua trilha pop potente, o uso de recursos como a câmera lenta e os planos claustrofóbicos, tudo a ressaltar a dramaticidade da jornada de Chow (papel de Leung) e sua vizinha Chan (Maggie Cheung). O protagonista, no entanto, carrega uma misteriosa sobriedade, que o ator que o interpreta, sob a direção segura de Kar Wai (em sua melhor fase), usa como recurso para intrigar e mesmo seduzir o espectador. Seu desespero não aparece. Existe? No fundo, a inevitabilidade do sofrimento como que o anestesia, mas sem tirar dele o desejo, muito pelo contrário. Esse balanço que dá complexidade à composição do personagem encontrou em Tony Leung um intérprete à altura, tão capaz de comunicar sentimentos distintos, ora aparentemente opostos, que se tornou icônico quando o assunto é o amor irrealizável.
Max Von Sydow (A Paixão de Ana)
Von Sydow era alto, tinha um rosto com formato e traços muito marcantes e um olhar profundo, ressaltado por uma força expressiva rara. Mas o que o fez um ator realmente gigante foi a delicadeza. Nos filmes de Bergman (eles fizeram 10 longas-metragens juntos), invariavelmente encarnava um sujeito oprimido pelas angústias da existência, apequenado por descobrir-se insignificante diante dos desígnios de Deus. Não é preciso ter fé para partilhar desse tormento: a magnitude da vida está na sua imaterialidade; associá-la à religiosidade foi um subterfúgio bergmaniano, coerente com as inquietações pessoais do cineasta. Bergman foi um dos maiores, se não o maior dos cineastas. E ninguém encarnou com tanta propriedade suas aflições quanto Von Sydow – por conta de sua delicada expressividade. Eu poderia ter escolhido A Hora do Lobo (1967), em que a proximidade da loucura faz sua interpretação pender para um registro menos naturalista e mais impressionante, mas opto por A Paixão de Ana porque esse me parece ser o filme do completo esvaziamento – desacelerado, doloroso, inescapável – de sua alma atormentada, culminando, na histórica sequência final, com a decomposição (visual, inclusive) de sua figura.
Anna Karina (Viver a Vida)
Logo no segundo dos 12 capítulos desse pequeno grande filme, Anna Karina vai ao cinema para ver A Paixão de Joana d’Arc (de Carl T. Dreyer, 1928). Godard, que a filma com paixão, devoção, precisa de apenas um corte para estabelecer um paralelo entre a atuação histórica de Renée Falconetti e a de sua heroína sensibilizada – e, ali já vai ficando evidente, de alma nua diante da hostilidade do mundo lá fora. O filme dentro do filme mostra um diálogo apresentado em planos e contraplanos fechados de Joana d’Arc com o personagem de Antonin Artaud, deixando o espectador à expectativa de que, saindo do rosto dele, a imagem mostrará o dela – só que Godard surpreende e insere o rosto de Nana (a personagem de Anna Karina), como se fosse com ela que Artaud estivesse se comunicando. Seus traços delicados deixam a expressão ainda mais comovente, ressaltada por uma fotografia que faz brilhar as lágrimas escorrendo pelo rosto. Nem sempre valorizada como merece, a grande atuação da musa de Godard se dá pela capacidade de comunicar, ao mesmo tempo, descobertas e decepções, crescimento e abatimento, a maturidade e a aflição pelo que esta impõe.