Elle

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Direção: Paul Verhoeven

Roteiro: David Birke, baseado no livro “Oh…”, de Philippe Djian

Elenco: Isabelle Huppert, Laurent Lafitte, Anne Consigny, Charles Berling, Virginie Efira, Judith Magre, Christian Berkel, Jonas Bloquet, Alice Isaaz, Vimala Pons, Raphaël Lenglet, Arthur Mazet 

França/Alemanha/Bélgica, 2016, Drama/Suspense, 130 minutos

Sinopse: Michèle (Isabelle Huppert) é a executiva-chefe de uma empresa de videogames, a qual administra do mesmo jeito que administra sua vida amorosa e sentimental: com mão de ferro, organizando tudo de maneira precisa e ordenada. Sua rotina é quebrada quando ela é atacada por um desconhecido, dentro de sua própria casa. No entanto, ela decide não deixar que isso a abale. O problema é que o agressor misterioso ainda não desistiu dela. (Adoro Cinema)

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O plano inicial era ambientar Elle nos Estados Unidos com os personagens, claro, falando inglês. No entanto, o diretor Paul Verhoeven sofreu para encontrar uma protagonista que topasse embarcar no projeto. E isso não é exagero: você consegue imaginar um filme recusado por Julianne Moore, Nicole Kidman e Kate Winslet, atrizes reconhecidas por eventuais papeis despidos de vaidade e atraídas por projetos transgressores? Segundo Verhoeven, que, junto aos produtores, ainda abordou nomes como Cate Blanchett e Sharon Stone, a situação que se repetia na maioria dos casos era a seguinte: as atrizes recusavam o roteiro já em uma primeira leitura ao invés de, como é de praxe, esperar alguns dias para dar um retorno negativo.

Com tantas recusas, Elle foi transferido para a França, onde finalmente encontrou Isabelle Huppert, atriz que, antes mesmo de chegar ao roteiro, havia lido a obra original (o romance “Oh…”, escrito por Philippe Djian) e acreditava que aquele era um papel que precisava interpretar. Pode ser que outras atrizes tenham rejeitado o projeto simplesmente por questão de agenda (o que seria uma coincidência tremenda, dada a declaração de Verhoeven sobre o roteiro ser muitas vezes descartado já em um primeiro contato), mas o nome de Huppert aponta para uma tese clara: talvez somente ela, a atriz mais corajosa da Europa, teria mesmo aceitado personificar Michèle Leblanc, a protagonista incrivelmente desafiadora de Elle.

Ironicamente, no final das contas, Elle é um trabalho de pegada muito mais européia do que norte-americana, começando pela ideia de que, como define a própria Huppert, o filme se apoia não em uma história, mas em uma personagem, traço muito característico do cinema europeu. Essa categorização é fundamental para compreender que, antes do thriller que estabelece envolvendo a desconhecida identidade de um estuprador, Elle é sobre as múltiplas e contraditórias facetas de uma mulher que já é um mistério por si só: deixando de lado a necessidade de causar simpatia no espectador para apostar nas imperfeições do realismo (e não é aí que residem os grandes papeis?), Michèle Leblanc se apresenta como uma pessoa que, ao reagir de forma inesperada após um ato de violência, é imprevisível em atos e pensamentos, desde a convivência com seus funcionários no trabalho até os julgamentos que faz acerca da vida sexual da mãe.

Sem nunca utilizar o estupro como ferramenta de vitimização para uma personagem de conduta frequentemente questionável, Elle se engrandece menos quando quer fazer mistério sobre o ato de violência em questão e mais quando documenta os dias de uma mulher que vive a partir de suas próprias regras. Um exemplo disso é como a agressão pode ser vista sob a luz do próprio passado da protagonista, que esconde um grande trauma envolvendo o pai ausente. Não seria a atípica reação de Michèle ao estupro uma forma de ela também tentar entender a conturbada índole de seu progenitor? A violência está frequentemente em pauta no roteiro de David Birke, e ela funciona melhor como uma forma de enriquecer as complexidades de uma mulher madura e solitária cujos ímpetos sexuais ainda são decisivos em suas atitudes (algo que raramente o cinema gosta de discutir em personagens como essa). 

Só que Michèle Leblanc é uma figura que, na vida real, causaria aversão em quase todos nós. Ao passo em que é vitoriosa na vida profissional como a prestigiada executiva-chefe de uma empresa de videogames  (o que não a livra de ter que às vezes levantar a voz para lembrar seus funcionários sobre quem manda no recinto, iluminando a questão de gênero no ambiente de trabalho), a protagonista encara as relações humanas a partir de um modelo próprio e que julga ser o ideal. Intolerante, não economiza ironias para desprezar as decisões do filho, abre mão de cerimônias e pesos de consciência para admitir erros e traições e diz qualquer coisa que venha à cabeça, o que a torna uma figura bela (e quem sabe evoluída) pela inabalável franqueza ou profundamente desumana por não considerar outros sentimentos que não sejam os dela.

Não há redenção para a protagonista de Elle – nem mesmo com a questão do estupro vindo à tona -, o que torna a missão de interpretá-la um desafio dos mais complexos. E Isabelle Huppert, atriz especialista em personificar tipos “difíceis” (definição que ela rejeita) como esse, sabe transformar Michèle Leblanc em uma mulher fascinante do ponto de vista dramático (e até cômico, já que o longa também é munido de um humor muito peculiar) ao invés de simplesmente reduzi-la ao status de ser humano desprezível por suas atitudes desregradas. Hoje é difícil imaginar qualquer atriz em seu lugar, pois o trabalho realizado aqui é de quinta grandeza e principalmente de total imersão em uma personagem que nunca é (e nem precisa ser) justificada ou redimida pelo roteiro. Huppert, que nunca busca tornar sua personagem palatável ao público, traz uma belíssima adição ao rol de papeis femininos fortes de 2016. Não à toa, ela e Sonia Braga (Aquarius) foram as divas mais aplaudidas no último Festival de Cannes por suas atuações.

Em um filme onde o fascínio se encontra no mundo feminino (todos os homens são fracos ou medíocres), outra qualidade se sobressai na construção dramática de Elle: a do diretor Paul Verhoeven em nunca armar um circo a partir dos inúmeros acontecimentos propostos pelo roteiro. São várias as tragédias pessoais vividas pela protagonista, o que felizmente não torna o conjunto implausível ou inverossímil. Pelo contrário: tudo serve para complementar as complexidades de um relato que, assim como o recente O Silêncio do Céu, parte de um estupro, mas nunca se torna necessariamente um filme sobre estupro. Experiência bastante desafiadora para a plateia, Elle, no entanto, é plenamente recompensador para quem aceita ser provocado. Se esse for o seu caso, pode acreditar: teremos longas e instigantes conversas sobre a obra durante um bom tempo.

2 comentários em “Elle

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