Direção: Pedro Almodóvar
Roteiro: Pedro Almodóvar, baseado em contos de Alice Munro
Elenco: Adriana Ugarte, Emma Suárez, Inma Cuesta, Michelle Jenner, Daniel Grao, Darío Grandinetti, Rossy de Palma, Nathalie Poza, Mariam Bachir, Susi Sánchez, Bimba Bosé, Agustín Almodóvar, Priscilla Delgado
Espanha, 2016, Drama, 99 minutos
Sinopse: Julieta (Emma Suárez/Adriana Ugarte) é uma mulher de meia idade que está prestes a se mudar de Madri para Portugal, para acompanhar seu namorado Lorenzo (Dario Grandinetti). Entretanto, um encontro fortuito na rua com Beatriz (Michelle Jenner), uma antiga amiga de sua filha Antía (Blanca Parés), faz com que Julieta repentinamente desista da mudança. Ela resolve se mudar para o antigo prédio em que vivia, também em Madri, e lá começa a escrever uma carta para a filha relembrando o passado entre as duas. (Adoro Cinema)
A canadense Alice Munro fez história quando recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 2013. Era a primeira vez que a honraria sueca se destinava, entre homens e mulheres, a um nome dedicado a fazer carreira a partir da produção de contos. Considerada uma das grandes vozes femininas da literatura contemporânea, a escritora tem como uma das marcas de sua obra o protagonismo de mulheres em histórias de amor e tragédia criadas a partir de eventos cotidianos (para principiantes, deixo como dica o livro Felicidade Demais, lançado em 2009). Imaginem, então, a comoção de saber que Pedro Almodóvar, o cineasta espanhol consagrado mundialmente por captar em seus filmes as alegrias e as mazelas da alma feminina, levaria às telas o universo da canadense com Julieta. Era o casamento perfeito, especialmente para ele, que vinha de um completo desastre (Os Amantes Passageiros) para retomar sua relação com o cinema feminino depois de exatos dez anos (Volver, de 2006, foi a última obra legitimamente Almodóvar assinada por ele nesse sentido). Entretanto, falta consistência a essa união aparentemente infalível, e é não muito difícil constatar o desvio: apesar de gêmeos tematicamente, a escritora e o espanhol têm pouco em comum no que se refere à forma, o que faz de Julieta uma experiência deveras decepcionante.
Ao contrário do que já foi dito, Almodóvar não parece ter perdido a mão. Com seu novo filme, é apenas vítima de uma incompatibilidade que ele próprio parece não ter percebido. Quando se pensa na carreira do cineasta, imediatamente vem à cabeça os deliciosos melodramas, as flores avermelhadas de Volver, a trilha acentuada de Má Educação, as histrionices de Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos e as tragédias do passado e do presente de Fale Com Ela ou Tudo Sobre Minha Mãe. É uma pegada totalmente oposta ao que Alice Munro realiza em seus contos tão repletos de delicadezas e introspecção. Uma prova da necessidade dessa abordagem é a transposição que Sarah Polley fez do conto The Bear Came Over the Mountain para o cinema com o delicadíssimo Longe Dela, longa que, por entender a carreira de Munro, torna emocionante uma história aparentemente banal de um casamento abalado pelo Mal de Alzheimer. Já em Julieta, texto e direção estão fora sintonia: se a história é sobre uma mulher que descortina o passado para explicar o presente onde sua filha agora está ausente, Almodóvar, com a insistente trilha do grande Alberto Iglesias, por exemplo, dá um tom quase policialesco ao filme, sugerindo que revelações engenhosas, crimes ou tragédias surpreendentes estão prestes a acontecer. Só que o diretor não percebe que não estamos em A Pele Que Habito (um filme excepcional, diga-se de passagem) e que Munro nunca sobe o tom nem mesmo para falar de fatalidades. Com ela, a fervura é sempre baixa.
Desregulado nesse sentido, Julieta conta uma história que deveria se entregar à lógica de que menos é mais e não ao acampamento estético e sensorial que arma plano a plano. É curiosa a sensação que o filme traz porque o diretor é plenamente consciente dos elementos que lhe consagraram (e sabe, claro, utilizá-los muito bem), mas essa tomada de consciência o impede de ver as verdadeiras necessidades dessa adaptação que une três contos específicos da autora (Ocasião, Daqui a Pouco e Silêncio, da coletânea Fugitiva, de 2004). Não temos, em Julieta, qualquer reviravolta inesperada, e isso frustra porque o diretor nos induz ao aposto. Com isso, o filme se prolonga em uma história por vezes atropelada na passagem do tempo e problemática no ritmo ao nunca nos entregar o que seu diretor e roteirista tanto sugere, culminando em um final completamente abrupto.
Com tanta exploração sensorial, Almodóvar esquece de dar sentido a pontos fundamentais da história que nunca ganham explicações plausíveis, uma vez que o roteiro nunca convence o espectador dos motivos que fazem a protagonista ter vergonha de seu passado a ponto de escondê-lo a sete chaves nem explora com o devido aprofundamento o real significado dessa culpa pesada que a personagem carrega. Em Julieta, prevalecem as escolhas do diretor de dramatizar em sons e cores o que, na realidade, está nas pequenas coisas. Se a experiência ganha pontos dramáticos mais dignos de nota, isso acontece graças ao ótimo desempenho de Emma Suárez. Ela, que interpreta a protagonista na fase madura com a devida pose de uma mulher sofrida de Almodóvar, tem um tempo consideravelmente menor em cena e tira o melhor da tarefa ligeiramente ingrata de ficar apenas narrando fatos de sua vida em uma carta que sabe-se lá por que está sendo escrita, já que não revela praticamente nada que a sua destinatária já não saiba ou tenha vivido anos atrás.
Marcando o vigésimo longa-metragem do diretor, Julieta teve passagem muito tímida pela competição do Festival de Cannes deste ano e não chega aos cinemas trazendo a revolução da carreira de uma atriz como aconteceu com Penélope Cruz em Volver ou as resoluções polêmicas do suspense A Pele Que Habito. São contraditórios os sentimentos causados acerca da qualidade do novo longa de Almodóvar porque tudo parece estar em seu devido lugar. Enquanto o roteiro, em sua essência, trata de questões muito interessantes como a de uma filha que reconhece só entender a mãe após passar pelas mesmas dores que ela ou sobre como a culpa é capaz de se perpetuar mesmo para quem não deveria ter motivos para senti-la, o cineasta continua impecável ao pensar planos e composições visuais que salientam um universo feminino trágico mas sempre altivo em muitas particularidades. Julieta, contudo, não se eleva em função dessa estranha e quase imprevisível incompatibilidade entre dois artistas que, na teoria, tinham tudo para dar certo, mas que, na prática, se revelaram mais fortes separadamente. Apesar da falta de um importante tempero, a mistura vale por trazer um cineasta retomando uma fórmula de sucesso que havia deixado de lado há uma década. Que Julieta seja encarado, então, como apenas o ensaio de uma bela retomada. Sendo otimista dessa forma, dá para compensar um pouco a frustração.