Presta atenção! Só existem três coisas nesse mundo: existe a vida, existe a morte e existe a sorte.
Direção: José Pedro Goulart
Roteiro: José Pedro Goulart
Elenco: Sandro Aliprandini, Patrícia Selonk, Eucir de Souza, Nicolas Conceição, Thiago Ruffoni, Lisandro Belloto, Paulo Adriane, Carlos Azevedo, Luis Franke, Heinz Limaverde, João Carlos Carpendo, Camila Vergara, Giulia Perillo, Simone Telecchi, Luciana Domiciano e Larissa Tavares
Brasil, 2015, Drama, 94 minutos
Sinopse: Esta é a história de Ênio, um menino de 14 anos, capturado em uma claustrofóbica teia familiar que lhe toma a alma e lhe detém o desejo. Ao tentar escapar, ele enfrenta uma noite tempestuosa que o fará mergulhar no imprevisível, no fantástico, no aleatório.
Foram diversas as vezes em que sentei frente ao computador para escrever sobre Ponto Zero, filme gaúcho que conferi no dia 13 de agosto durante a programação competitiva do 43º Festival de Cinema de Gramado. Falhei em todas as tentativas. Isso não aconteceu por distração ou falta do que dizer, mas porque nunca encontrei as palavras certas para descrever o quanto Ponto Zero me comoveu – e talvez nunca encontre. De forma bem genérica, a explicação é a seguinte: esse é o tipo de experiência que, a cada minuto, me lembrava o porquê de eu ter me tornado um apaixonado por cinema. Sinceramente? Não sei se é necessário racionalizar cada detalhe que fez Ponto Zero conversar comigo. Às vezes é simplesmente um mergulho, algo cósmico, exatamente como acontece quando a gente se apaixona sem sequer se importar com as razões. Só que volta e meia vem essa necessidade de exteriorizar o sentimento, falar sobre a identificação com a obra, como se escrever sobre ela amenizasse a vontade que frequentemente vem de revê-la. Ou seja, o filme em si é a causa disso tudo, mas também a cura. Vou tentar agora, do jeito que for, falar um pouco sobre essa obra.
Durante o Festival de Cinema de Gramado, estranhava o fato do diretor José Pedro Goulart falar pouco em entrevistas, revelar quase nada sobre o filme e até mesmo escolher minuciosamente as fotos de divulgação de Ponto Zero (nenhuma delas sequer revela o rosto do protagonista). Frescura? Pretensão? Nada disso, mas, sim, ele involuntariamente criou muitas expectativas em torno do filme, e lembro que, quando a sessão começou, virei para minha colega e disse “é bom que esse filme seja uma obra-prima depois de tanto mistério”. E foi. De repente, o mínimo que o diretor falava sobre a obra fez todo sentido porque Ponto Zero se revelou uma obra digna de ser sentida e não necessariamente de ser explicada. É o típico caso de quanto menos se falar sobre o filme, mais imersiva e surpreendente será a jornada. Para quem gosta de comparações, muitos o relacionam a Depois de Horas, de Martin Scorsese, e eu não deixo de me lembrar da adolescência igualmente solitária e angustiante de Os Famosos e os Duendes da Morte. Mas Ponto Zero tem uma pegada própria e, mesmo com as similaridades temáticas, se distancia bastante desses dois filmes.
Já nos primeiros minutos é perceptível que o primeiro longa-metragem da carreira de Goulart (que dirigiu ao lado de Jorge Furtado O Dia Em Que Dourival Encarou a Guarda, um dos mais célebres curtas da cinematografia brasileira) tem um apuro técnico impressionante. A piscina que se confunde com o espaço, a narração que fala sobre distância ao relatar um problema entre dois astronautas e a lindíssima trilha sonora de Léo Henkin já dão o tom: gostando ou não, esta é uma obra que não lhe causará indiferença – e sempre gosto de reforçar que não existe melhor elogio para um filme. Aos poucos, e muito silenciosamente, vamos entrando no conturbado mundo de Ênio (Sandro Aliprandini), um jovem que apanha dos colegas de escola e em casa vive um verdadeiro pesadelo frente aos problemas matrimonias de seus pais. Ele quase não é visto como alguém de personalidade própria – e seus longos cabelos já indicam que Ênio também comprou a ideia de que precisa estar constantemente escondido -, mas, em uma noite específica, embarcará sozinho em uma viagem pelas ruas de Porto Alegre que marcará sua vida para sempre.
Filmado quase inteiramente em ordem cronológica e com os atores recebendo os roteiros de suas cenas minutos antes de gravá-las, Ponto Zero é um filme de poucas palavras e de notável força visual. Dos impactantes momentos noturnos e chuvosos ao modo como é retratada a capital gaúcha (os carros aqui andam de trás para frente), todas as escolhas “técnicas”, digamos, comunicam alguma coisa, ao contrário dos que dizem que esta é uma obra que tem mais forma do que conteúdo. Afirmar que Ponto Zero tem embalagem demais para conteúdo de menos é uma verdadeira heresia – e pior: só comprova uma desatenção com cada mensagem escondida nas entrelinhas. Não é uma experiência fácil, admito, mas, para mim, essa definição vem por outros motivos: a história é mesmo quase desesperançosa, obscura, pessimista. E a desestruturação familiar – tema que pontuou basicamente todos os filmes do Festival de Cinema de Gramado deste ano – é apenas uma das feridas mexidas por José Pedro Goulart em meio a uma adolescência de solidão, ímpetos sexuais e uma incontrolável vontade de crescer logo.
Apesar do difícil drama transmitido também em imagens (Ponto Zero consegue uma viagem tão sensorial e hipnótica que nem percebemos um peso crescer em nossas costas), o resultado é perfeitamente contundente em sua concepção. Admiro a coragem do jovem Sandro Aliprandini, que, aos 14 anos, topou destemidamente embarcar em um projeto complexo como esse. Seu personagem é dos mais difíceis: quase não conhecemos a voz de Ênio e Sandro precisa exteriorizar em gestos e expressões a personalidade e as angústias de seu sufocado personagem. Tirou de letra. Apesar das sombras, entretanto, Ponto Zero é um filme sobre a busca por algum tipo de luz e, principalmente, sobre como essa procura só depende de nós. Fiquei dias processando a história (tanto que só agora consegui escrever sobre ela) e, nesse meio tempo, durante o Festival, consegui dar um abraço no jovem Sandro durante a entrevista que fiz com ele, e também dizer pessoalmente ao Zé Pedro o quanto eu torcia pelo filme dele. Não costumo fazer isso, mas o que eu sentia pelo filme pediu. Isso porque a obra falou comigo não apenas em função das minhas preferência cinéfilas, mas também por conseguir alcançar o meu interior como ser humano mesmo. Não vejo a hora de reencontrar Ponto Zero.
Acompanhei no twitter seu entusiasmo com “Ponto Zero” e acho que seu texto conseguiu mostrar um pouco do quanto a obra te impactou. Espero que o longa obtenha uma distribuição decente no Brasil.
Kamila, também espero que tenha uma boa distribuição, mas também entendo que esta é uma obra bastante difícil… Tomara que, pelo menos, os circuitos alternativos o celebrem.