My tastes are very singular. You wouldn’t understand.
Direção: Sam Taylor-Johnson
Roteiro: Kelly Marcel, baseado no livro “Fifty Shades of Grey”, de E.L. James
Elenco: Dakota Johnson, Jamie Dornan, Jennifer Ehle, Eloise Mumford, Marcia Gay Harden, Rita Ora, Luke Grimes, Max Martini, Callum Keith Rennie, Andrew Airlie, Dylan Neal, Rachel Skarsten, Emily Fonda, Anthony Konechny, Bruce Dawson, Tom Butler
Fifty Shades of Grey, EUA, 2015, Drama, 125 minutos
Sinopse: Anastasia Steele (Dakota Johnson) é uma estudante de literatura de 21 anos, recatada e virgem. Uma dia ela deve entrevistar para o jornal da faculdade o poderoso magnata Christian Grey (Jamie Dornan). Nasce uma complexa relação entre ambos: com a descoberta amorosa e sexual, Anastasia conhece os prazeres do sadomasoquismo, tornando-se o objeto de submissão do sádico Grey. (Adoro Cinema)
Cinquenta Tons de Cinza repete o efeito da saga Crepúsculo: é um filme-evento. Ou seja, todo mundo vê e comenta. Mesmo que o consenso seja de que o resultado é uma catástrofe, se você não o assistir, estará desatualizado nas rodas de conversa. Só que o caso dessa aguardada adaptação do romance homônimo escrito por E.L. James (que não li e nem preciso, pois cinema independe da literatura) é ainda mais grave do que Crepúsculo no sentido de disseminar ideias erradas. Isso porque Cinquenta Tons de Cinza é dirigido ao público adulto, que já deveria ter idade e vivência suficientes para perceber que basicamente tudo o que é pregado nessa história sintetiza o que existe de pior no machismo cada vez mais combatido e – por incrível que pareça – presente nos dias de hoje. Indo mais além, o filme de Sam Taylor-Johnson (do ótimo Os Garotos de Liverpool) não é só uma exposição de valores absurdos, mas também um produto cinematográfico realmente ruim e pobre em criações.
A inexistência de criatividade já fica mais do que evidente nos primeiros minutos de projeção. Não é preciso puxar muito a memória para perceber que o começo de Cinquenta Tons de Cinza apresenta exatamente a mesma construção de O Diabo Veste Prada: uma menina desglamourizada se veste (mal) para uma entrevista com uma figura poderosíssima, misteriosa e intimidante. Enquanto Anastasia (Dakota Johnson), a tal moça, parte para o destino em um singelo fusca azul, Christian Grey, o tal misterioso, chega ao trabalho em uma imponente limousine. A menina admira o prédio gigantesco quando acha o destino. Na sequência, a câmera acompanha a porta do elevador se abrindo quando ela adentra o local e, durante todo esse seu deslocamento, o filme intercala rápidos momentos de Grey se vestindo e se preparando para o momento, sem que seu rosto seja revelado com o objetivo de criar certo suspense. Anastasia chega, tropeça, gagueja, fala coisas erradas e o empresário, agora revelado como um homem lindo e deslumbrante, já trata de resumir o encontro ao ver a inexperiência da garota. Mas ela faz alguma coisa especial (que não é perceptível, ao contrário do ótimo momento em que a personagem de Anne Hathaway confronta Meryl Streep em Prada quando discursa sobre como seu talento deve falar mais alto do que suas roupas), fisgando a atenção do desejado Christian Grey. E os dois, em questão de poucos minutos, já estão secretamente apaixonados.
Como se não bastasse uma certa incoerência que se revelará mais tarde (por que mesmo ela foi tão mal vestida para uma importante primeira entrevista se, cenas depois, faz uma nova reunião com Grey usando salto alto, maquiagem e um vestido que realça sua beleza?) ou o fato de que nenhum jornalista – mesmo em formação – enviaria a amiga para substituí-lo em uma entrevista se hoje existe telefone e e-mail para que perguntas sejam respondidas, a sucessão de cópias desse primeiro momento ainda é precedida por outra metáfora absurdamente preguiçosa: óbvio que a menina, após a reunião supostamente cercada de tensão sexual, opta por tomar tranquilamente um banho de chuva ao invés de sair correndo para o carro afim de não se molhar. Que original, uma chuva para abrandar o fogo interno da protagonista! E o que dizer, então, de quando a câmera, minutos depois, detalha o “Grey” desenhado no lápis que Anastasia ganhou e que coloca em sua boca durante toda uma aula de literatura? Resumo da ópera: já nas cenas iniciais, Cinquenta Tons de Cinza anuncia que não é um filme inteligente e que muito menos compensará em ideias cinematográficas a premissa que por si só já é cercada de cheia de valores errados.
Se, na casa de Christian, o quarto sexual é decorado apenas com vermelho e o de Dakota estoura os olhos de tão branco, exaltando o pecado e pureza respectivamente (sério mesmo que até na direção de arte não resolveram criar um pouquinho além?), tal preguiça de pensamento se estende ainda à construção da relação dos personagens – que, aos poucos, sai da mera obviedade para o total desleixo. Ambos são figuras completamente desinteressantes. É implausível como ele, um homem tão lindo, desejado e poderoso, foi se interessar por ela – e isso não tem nada a ver com beleza ou conteúdo, mas com o fato de Christian repentinamente ter se encantado com a personalidade da menina sendo que ela não demonstrou nada minimamente aceitável para que sequer tivéssemos simpatia por sua figura. Já ela, uma garota virgem e que nunca teve um namorado, parece mais uma mercenária: percebam como Anastasia sempre é alegremente comprada por Christian, seja com um carro caríssimo para que ela finalmente tome uma importante decisão na relação dos dois ou com uma voltinha em um avião particular para que ela finalmente esqueça uma discussão.
São muitos os aspectos questionáveis da personalidade de cada um (e que serão discutidos mais adiante), mas o pior é o que se desenrola “sentimentalmente” a partir de quando Christian finalmente revela para Anastasia as suas “preferências singulares”. Pior porque todo e qualquer conflito originado a partir daí não tem qualquer consistência. Os personagens brigam por bobagens (como a protagonista quer insistentemente exigir de seu amado algum tipo de sentimento sendo que ele, desde o início, já deixou bem claro que não se envolve a ponto de sequer namorar?), outras vezes por questões simplesmente absurdas (como quando Christian, indignado, questiona Anastasia por ela simplesmente ter decidido ir visitar a mãe em outra cidade sem ter pedido sua permissão), e no fim fica difícil ter simpatia por personagens repetitivos, irritantes e com defeitos sem qualquer justificativa convincente (“eu sou assim!”, simplificam a figura de Christian no roteiro).
Romantizar uma relação abusiva é um dos tantos problemas conceituais de Cinquenta Tons de Cinza. “Abusiva? Mas eles assinaram um acordo!”, justificam alguns fãs. Sejamos sinceros: uma garota de 21 anos, virgem e que nunca teve um namorado realmente tem a mesma dimensão do que é certo ou errado em uma relação com um homem já beirando seus 30, rico e que trancafiou até aquele momento mais de 15 mulheres em seu apartamento como suas escravas sexuais? O caos é que não existe uma discussão sobre a situação e sim uma romantização mesmo. São gritantes as bobagens românticas trabalhadas, como Christian dizer a todo momento que nunca dormiu com alguém depois de uma transa para, claro, com sua nova “vítima” (é mais adequado chamá-la assim), dormir ao seu lado em um sono profundo. Ou então afirmar veemente que não faz programas de casais como jantar ou ir ao cinema para, cenas depois, lá estar ele já se voluntariando para marcar um encontro desse tipo. Oh, o homem que fazia sexo só por consumismo agora teve o seu coração flechado a ponto de abandonar seus velhos hábitos!
Com o acúmulo de gigantes fragilidades em sua construção (a mãe inútil vivida inexplicavelmente por Marcia Gay Harden nada acrescenta), implausibilidade de situações e conflitos vindo de fiapos ao longo de pouco mais de duas horas de duração, Cinquenta Tons de Cinza é arrastado e interminável. O próprio sexo, que deveria ser o afrodisíaco ou o ponto alto da crítica e da mexida na ferida (dependendo do bom senso de quem vê), tampouco consegue ser excitante ou incômodo. O machismo do filme ainda se reflete na própria nudez vista no filme: enquanto Dakota Johnson surge com os seios à mostra a todo momento e eventualmente com quase nu frontal, Jamie Dornan contracena com a atriz apenas descamisado de calça jeans em praticamente todas as cenas, ressaltando o forte problema que o cinema estadunidense ainda tem com a nudez masculina. Mulher é um objeto que pode estar nu sem qualquer pudor. Já o homem se excita com suas práticas masoquistas vestindo calça jeans, tirando-a apenas para formalizar a cena do ato da penetração em si.
Os atores não têm muito o que fazer com o roteiro mal escrito. Enquanto Dakota Johnson é esforçada mas ineficiente (suas tentativas de ser sexy mordendo o lábio são puro humor involuntário), Jamie Dornan não tem nada o que fazer além de ostentar sua inegável beleza, pois seu Christian Grey tem sempre o mesmo tom de voz e é um personagem que não cansa de surpreender negativamente com atitudes capazes de indignar qualquer pessoa sã. Como, em pleno século XXI, um público adulto pode se comover e vibrar com uma relação onde o homem decide como a mulher deve transar, o que ela come, com quem ela fala, com que frequência ela bebe ou com quem ela pode transar além dele… Isso me parece um grande mistério. Antes Cinquenta Tons de Cinza levantasse questionamentos ou discussões a partir dessas situações, mas é tudo muito claro: a mulher é uma submissa, como o filme literalmente profere e romantiza. Se, em uma produção de duas horas, isso já assusta e entedia, é ainda mais preocupante saber que existem outros dois filmes mais adiante. Sucesso e comoção mundial para uma história como essa? Parem tudo porque quero descer. Tenho medo do futuro da humanidade.
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Ganhei a trilogia de livros no Natal retrasado: li o primeiro, parei o segundo quase na metade e passei longe do terceiro. Seu texto é bastante esclarecedor porque parece que o filme é fiel a obra e no livro acontece essas situações que você afirma aqui: tornar uma relação abusiva um romance e convencer as menininhas de que é um “conto de fadas” porque você pode ter o que quiser (riquezas?) se você se entregar a um “amor selvagem” e ser submissa de um homem, que determina o que você faz da vida? Para, né?!
O que não consegue entrar na minha cabeça é que foi uma mulher que escreveu isso: são muitas referências machistas, além de ser muito mal escrito, pior que a “musa inspiradora” Stephenie Meyer. Verei o filme quando chegar em VOD ou sei lá, não consigo pagar pra assistir isso. Humanidade cada dia mais podre. :(
Mayara, ainda me faltam palavras para expressar por completo o quão atônito eu fiquei com o que vi “Cinquenta Tons de Cinza”. Que bom que não sou único com medo do futuro da humanidade.
Graças a sua análise, Matheus, não vou ficar tão desatualizada. E não vou conferir “50 Tons de Cinza” de jeito nenhum. Obrigada por sofrer por mim! ;-)
Stella, faz bem em não conferir! Assim, se poupa de um grande sofrimento! Beijos!