Começou hoje minha maratona na 38ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. É a primeira vez que o Cinema e Argumento cobre o evento, então, vamos ver como como nos saímos a partir de agora! Cheguei em São Paulo já perdendo um dos longas que mais queria ver (Dois Dias, Uma Noite, dos irmãos Dardenne e com Marion Cotillard), mas para este existem outras sessões até o final da Mostra. Devido ao cansaço da viagem, dois momentos de turbulência durante o voo e as etapas de acomodação na cidade, comecei apenas com um filme, mas já aproveito para rememorar outro que foi exibido hoje pela primeira vez e que já havia conferido este ano no Festival de Cinema de Gramado. Vamos aos longas!
Muitos Homens Num Só, de Mini Kerti
Desde que conferi A Coleção Invisível ano passado em Gramado passei a aguardar com curiosidade as próximas incursões dramáticas de Vladimir Brichta no cinema. Ele, que no início da carreira participou de várias montagens do gênero no teatro, acabou fazendo sucesso na TV com as comédias – e até hoje está no ar com a divertida minissérie Tapas & Beijos. Em A Coleção Invisível, ele entregava um belo desempenho como um jovem que, após um trágico acidente de carro, decide mudar de vida viajar pelo interior da Bahia em busca de uma valiosa coleção que é a chave para um negócio. O filme também ajudava bastante, o que fez daquela uma grande oportunidade para o ator. O mesmo não se repete neste Muitos Homens Num Só, que misteriosamente faturou 10 prêmios no Festival de Pernambuco deste ano, incluindo melhor filme e uma estatueta de melhor ator para o próprio Vladimir.
Narrando a história verídica de Artur Antunes Maciel, um assaltante profissional que, no século XX, roubou vários hoteis do Rio de Janeiro, o filme de Mini Kerti acerta na reconstituição de época (os figurinos e a direção de arte são exemplares), mas é frágil narrativamente e também na sua própria encenação. Existe uma clara falta de força em todas as propostas do roteiro. De um lado, a insossa vida bandida do protagonista, que não consegue causar maiores tensões ou tramas mais complexas. A prova disto é a total falta de aproveitamento de dois ótimos atores: César Troncoso e Caio Blat, reduzidos a coadjuvantes previsíveis, apáticos e até mesmo beirando a canastrice (neste terceiro caso, é Troncoso quem se enquadra).
Paralelo a isso está o envolvimento amoroso de Artur com a bela Eva (Alice Braga), uma mulher casada e bem de vida. Brichta e Braga bem que tentam, mas o roteiro é raso demais para desenvolver qualquer conexão com o espectador além da boa presença dos dois atores. Ela está, como de praxe, esbanja naturalidade e tem a grata (mas indireta) função de iluminar a tela toda vez que entra em cena. Neste sentido, se Brichta por si só não tem muito o que fazer com o personagem (seja pelo texto que lhe é entregue ou até mesmo por seu empenho aqui), a situação piora para ele quando Braga surge tão natural e humana na história. Ela, sem pensar duas vezes, é o que existe de melhor no filme.
Muitos Homens Num Só, além de tudo, parece muito fake na forma como entrega diálogos com frases prontas ou situações desenvolvidas mecanicamente. É complicado se conectar com este filme, que nunca é o exemplar suspense envolvendo assaltos ou o emotivo romance envolvendo uma relação proibida. O resultado está longe de ser um desastre, mas, dado o investimento na parte técnica, o potencial de uma trama aberta a várias abordagens e o próprio talento de seus dois atores, o resultado merecia pelo menos ser um pouco mais além de uma sessão completamente esquecível. A competição no Festival de Pernambuco devia estar realmente fraca para uma celebração exacerbada como esta.
A Despedida, de Marcelo Galvão
Em certo ponto de A Despedida, Almirante (Nelson Xavier) diz que se a aparência explicasse a essência, o sabor não seria necessário. E esta é uma afirmação que sintetiza com perfeição toda a proposta deste belo filme do carioca Marcelo Galvão, que aqui está em sua melhor forma. Nada é o que parece nesta história baseada em memórias familiares do próprio diretor. Galvão abre para o público o dia em que seu avô, com mais de 90 anos, decide se despedir de tudo o que é mais importante em sua vida e ter uma última noite de amor com a sua amante 50 anos mais nova.
A aparência não explica a essência em A Despedida porque Almirante, um homem que, nos 10 primeiros minutos de filme, passa por praticamente uma via crucis para conseguir se levantar da cama, tomar banho e se vestir, tem fragilidades somente em sua forma física. No espírito, o personagem interpretado magistralmente por Nelson Xavier (coroado em Gramado com o Kikito de melhor ator este ano) ainda vive com completa paixão, como se fosse um jovem (re)descobrindo os pequenos – e grandes – prazeres da vida. Tanto que a própria amante vivida por Juliana Paes brinca que este seu homem de mais de 90 anos é muito mais “macho” do que todos os outros que ela já conheceu.
Um dos pontos mais fascinantes deste longa é justamente isso: a virilidade, a “macheza” e a integridade de um homem estão longe de ser ligadas a sua idade ou a sua condição física. Para Almirante, acordar e ver que sua fralda não está suja é uma vitória. Já para Fátima, sua amante, este e outros detalhes estão longe de falar qualquer coisa sobre o que seu companheiro realmente representa. Por isso, é muito tocante a forma como ela, percebendo as dificuldades de locomoção de Almirante, faz questão de ajudá-lo sem que o mesmo perceba, como no momento em que coloca uma toalha em uma posição estratégica para que ele consiga agarrar o tecido e se levantar da banheira após várias tentativas mal sucedidas.
A Despedida é ainda mais belo e tocante porque se utiliza acertadamente de uma estrutura extremamente eficaz: a de mostrar a vida inteira de um personagem em um único dia. Isso mesmo, o protagonista está nos braços de sua amante apenas na meia hora final (quando o filme ganha novas cores e emoções), mas cada conhecido que ele encontra em um bar, cada momento que ele compartilha com um estranho na rua e, principalmente, cada confissão ou pedido de desculpas que ele profere revelam tudo o que precisamos saber sobre sua personalidade sem que o filme tenha que nos apresentar toda a sua história de vida.
Um ponto que desperta bastante preocupação no desenrolar da história é como Marcelo Galvão tornará emocionalmente crível a relação daquele homem que parece sempre às vésperas de se desmanchar fisicamente com uma mulher 50 anos mais nova. E não qualquer mulher: Juliana Paes! Felizmente, não só o encontro dos dois não se revela falho como também proporciona a melhor parte de A Despedida. Xavier, que dispensa comentários com uma entrega física e uma sensibilidade como há anos não víamos no cinema brasileiro, faz uma dupla brilhante com Paes, aqui desglamourizada e surpreendente em cada minuto de sua interpretação. Eles e Galvão conseguiram fazer um filme sensível, maduro e melancólico, mas também muito esperançoso.