No papel, a proposta de Transamérica justificaria um filme completamente diferente. Ora, a história dirigida por Duncan Tucker mostra a vida de uma transexual que está prestes a fazer a tão esperada cirurgia de troca de sexo. Solitária e sem qualquer contato com a família, ela descobre ter um filho – fruto de uma única relação sexual com uma mulher na adolescência. O filho está preso por porte de drogas e vive uma vida sem rumo, prostituindo-se para ganhar dinheiro e morando em um apartamento caindo aos pedaços. Ou seja, na teoria, Transamérica tinha tudo para ser um drama pesadíssimo e restrito, mas o que o diretor Duncan Tucker faz é seguir um caminho totalmente diferente: não, ele não deixa de explorar os dramas da protagonista, mas o faz adotando uma abordagem leve e espirituosa.
Esse foi o primeiro longa-metragem de Tucker (até hoje, ele não realizou nenhum outro) e logo de cara o diretor já impressiona com o belo controle que tem sobre a história que ele próprio escreveu. Se o roteiro coloca a densidade esperada de escanteio, isso não quer necessariamente dizer que Transamérica seja superficial. Bem pelo contrário: é exatamente na habilidade de tornar ainda mais especial a jornada de Bree Osbourne (Felicity Huffman) com esse posicionamento que ele surpreende. É na leveza e no bom humor que Tucker fisga o espectador. Assim, é impossível não se envolver com a jornada da protagonista e com cada momento que ela passa na estrada com o jovem Toby (Kevin Zegers, premiado em Cannes como revelação por seu trabalho aqui). Mais do que isso, o filme traz um olhar muito humano sobre a transexualidade (não há espaço para estereótipos ou julgamentos por parte do roteiro) e sobre como nos encontramos com nós mesmos de diferentes maneiras nessa vida.
A condição de Bree é, claro, o que move os acontecimentos de Transamérica, um road movie que compreende por completo o sentido de colocar personagens na estrada. As transformações da protagonista e do jovem Toby durante o tempo que passam juntos são devidamente pontuadas – o que faz com que o espectador sinta e aceite cada evolução ou regressão deles. Prova desse eficiente arco é a questão da cirurgia da protagonista. Inicialmente tratada por ela como o dia que será o mais feliz de sua vida, a cirurgia logo surge como um dos momentos mais tristes do filme. Além disso, todas as figuras coadjuvantes que aparecem na viagem acrescentam algo ao que está sendo contado: do caubói no restaurante aos familiares indesejados mais inevitáveis, Transamérica dá sentido a todos – e, assim como a dupla principal, eles são plenamente condizentes com a vida real.
É recompensador acompanhar a jornada de Bree, especialmente porque Felicity Huffman entrega um desempenho não menos que épico. Remoer o absurdo de ela ter perdido o Oscar para Reese Witherspoon já não é mais válido nessa altura do campeonato, até porque é o trabalho de Huffman que permanece lembrado com o passar dos anos. Fora a impressionante maquiagem e o trabalho corporal, Huffman humaniza a protagonista com um calibre de veterana, transitando com maestria entre o drama e a comédia e criando uma personagem tão querida que chega quase a se tornar parte da nossa família. Bree tem a nossa total torcida e compaixão, o que certamente é fruto do impecável desempenho da atriz. Ela ainda faz uma ótima dupla com o jovem Kevin Zegers, que segura bem o passado traumático e os problemas de um personagem que poderia soar exagerado e inverossímil nas mãos de outro ator. No elenco, Fionulla Flanagan ainda merece destaque como a mãe perua e insuportável que deseja comandar a vida de todos.
Muito além da histórica interpretação de Huffman e do já citado enfoque diferenciado para um tema pesado, Transamérica é, sem qualquer exagero, uma verdadeira lição de vida e respeito. Sempre honesto com os personagens e com a vida de cada um deles, Duncan Tucker mostrou ter um talento inegável como contador de histórias. Pena que, por alguma razão, ele não seguiu carreira. Deveria voltar à ativa, já que fez escolhas pra lá de admiráveis. Entre elas, a de chamar Dolly Parton para criar Travelin’ Thru, a canção-tema do filme (também indicada ao Oscar e finalista do Grammy). Resumindo perfeitamente a proposta da estrada como fator fundamental para a reaproximação dos personagens com a vida e com eles mesmos, a música ainda fala sobre identidade, companheirismo e esperança. Ela é, enfim, uma bela síntese de Transamérica. Outro elemento muito especial de um filme que, com o perdão do comentário clichê, merece ser visto por todos.
FILME: 9.0
Alex, o teu comentário foi perfeito! É exatamente assim que me sinto com “Transamérica”!
Pedro, é um filme que merece revisões :)
Kamila, acho que o filme tem várias sutilezas e escolhas diferenciadas que o colocam muito além do perfeito desempenho da Felicity Huffman.
Entendo a defesa que muita gente faz da performance da Felicity Huffman e ela, com certeza, tem um trabalho mais complexo do que o de Reese Witherspoon, vencedora do Oscar de Melhor Atriz no ano em que ambas concorreram ao prêmio. De todo jeito, acho que “Transamérica” se torna o filme que é justamente por causa da forma como Felicity Huffman interpreta o papel. Ela que merece todos os méritos pelo filme ter alcançado a repercussão positiva que teve.
O Alex falou bonito no comentário dele!!!
Concordo com o comentário do Alex. Lembro de gostar bastante do filme. Preciso rever. Abs!
Sempre acreditei que o cinema é capaz de mudar um pouco o nosso modo de encarar a vida e as pessoas que nos cercam. Desta forma, penso que todos aqueles que se deixaram levar pela proposta de “Transamérica” provavelmente saíram com uma perspectiva modificada diante daqueles indivíduos que são encarados pela sociedade como anormais devido as escolhas que fizeram. Há mesmo um tom espirituoso no filme e a cena final é uma bela resolução para dois personagens que finalmente aceitam um ao outro como são. É um filme muito bonito, precisamos de mais histórias assim.