“Homem com H” é celebração fiel e tocante à essência de Ney Matogrosso

O Ney é um grande artista.

Direção: Esmir Filho

Roteiro: Esmir Filho

Elenco: Jesuíta Barbosa, Rômulo Braga, Hermila Guedes, Jullio Reis, Bruno Montaleone, Caroline Abras, Mauro Soares, Lara Tremouroux, André Dale, Bruno Parmera, Pedro Zurawski, Jeff Lyrio, Luiz Xavier

Brasil, 2025, Drama, 129 minutos

Sinopse: Dono de uma voz inconfundível e de performances memoráveis, Ney Matogrosso morava com os pais e irmãos na pequena cidade de Bela Vista (MS). Os embates com o pai, que insistia que o menino “virasse homem”, levaram Ney a se afastar da família, antes de enveredar para a vida artística. Anos depois de sair de casa, em São Paulo, estreou como vocalista dos Secos e Molhados, dando início às performances históricas que o definiram como um dos maiores artistas brasileiros da atualidade.

Quando anunciada, a escolha de Esmir Filho para dirigir a cinebiografia de Ney Matogrosso causou certa estranheza. Para além da admiração pelo cantor, por que um cineasta afeito ao cinema autoral (são seus filmes como Os Famosos e os Duendes da Morte e Verlust) de repente migraria para o tão saturado — e comercial — mercado das cinebiografias atuais? Das duas uma: ou Esmir estava disposto a se entregar às convenções do gênero para experimentar as glórias de um grande sucesso comercial ou havia fechado um acordo precioso para poder contar, com liberdade e autoralidade, a história de uma importante figura da cultura brasileira. Felizmente, estamos diante da segunda alternativa.

Homem com H, que, no título em, já dribla a saída fácil e preguiçosa de dar ao projeto o nome de seu biografado, é um mergulho muito pessoal e corajoso na vida de um cantor avesso a normas e padrões. Contar a vida de Ney Matogrosso sem as devidas doses de liberdades ou provocações seria um desrespeito com o público e, antes de tudo, com o próprio Ney, que acompanhou o desenvolvimento do projeto munido do mesmo comportamento admirável de Elton John em Rocketman: ambos contribuíram para os roteiros sem nunca censurar ideias ou amaciar momentos complicados de suas trajetórias.

É uma benção importante para Homem com H porque confere verdade a um filme formal em estrutura, mas genuíno em emoção, narrativa e interpretações. Esmir Filho não tem medo de comandar essa história sem revisitar as barreiras rompidas por Ney ao longo de uma carreira que tentavam a todo custo censurar, seja literalmente, durante os tempos em que a ditatura militar brasileira interferia até mesmo no número de rebolados que um homem poderia dar nos palcos, ou por uma sociedade conservadora e despreparada para uma figura tão descontruída quanto ele.

O roteiro escrito por Esmir adota a subversão de Ney Matogrosso como norte: carregado ora no drama, ora na comédia, o texto nos lembra que ser quem se é traz prazeres e desafios em dosagens parelhas. A difícil relação do protagonista com o pai, por exemplo, que agredia o filho por se negar a ter tanto um homem gay quanto um artista na família, é central na construção dramática, assim como os toques de humor garantem a irreverência necessária para ilustrar o relato de uma resistência que jamais se inclinou para a vitimização.

A subversão como fio condutor do roteiro é percebida ainda em como Homem com H aborda o repertório do cantor. Ao invés de ser um desleixado pout-pourri dos maiores sucessos de Ney para meramente ativar a memória afetiva do público, o filme toma cuidado para dar contexto à entrada das canções na vida de Ney ou como elas traduzem no palco aquilo que ele diz ser: alguém se definições, um bicho que incorpora comportamentos e expressões que o público tem dentro de si, mas morre de medo de externalizar.

Após ter visto o longa, Ney comentou que pode até não ter dito exatamente algumas das coisas que estão na tela — ainda assim, ele reconhece que, sim, não há dúvidas de que ele as poderia ter dito. Aí está a preciosidade de um trabalho como Homem com H: (re)conhecer a essência de seu personagem a ponto de, com notável naturalidade, saber como ele teria falado ou reagido fora dos holofotes da vida pública. É, ao meu ver, um dos maiores atestados de aprovação e admiração que Esmir poderia receber por sua visão artística para essa cinebiografia.

Tamanha compreensão do biografado catapulta a forte e tocante abordagem da expressão corporal e sexual de Ney Matogrosso. Aqui não me refiro ao trabalho técnico impressionante de Jesuíta Barbosa ou à reconstituição de marcantes aparições públicas do cantor — Homem com H é, na verdade, recheado de sensibilidade ao encapsular o corpo como elemento indissociável das dores e alegrias de seu protagonista e como instrumento de expressão e luta para toda uma geração que viu seu prazer se tornar risco de vida com a descoberta da AIDS.

Esmir filma o desejo com sensualidade rara, onde a nudez em si importa menos do que tudo aquilo que ela traduz para o personagem e para a história. Dessa forma, o êxito de Jesuíta Barbosa ultrapassa as fronteiras de um difícil trabalho técnico para ganhar verdadeira potência no modo como ele trabalha a relação entre o interno e externo de um homem que nunca se dobrou diante das inúmeras tentativas de lhe tolherem e que buscou viver, amar e performar do jeito que sempre quis.

Ademais, não poderia deixar de mencionar uma reparação cinematográfica importante feita em Homem com H envolvendo a relação entre Ney Matogrosso e Cazuza. Outrora solenemente ignorado em Cazuza – O Tempo Não Para, o caso de amor entre os dois ganha espaço merecido e considerável agora. Isso porque, além de relação bela e conturbada na vida de Ney, Cazuza representou uma série de outras coisas: ele era, enfim, uma paixão impossível, mas um semelhante em carreira, desejos e forma de se impor diante da sociedade. Ignorar o simbolismo de tamanho encontro foi uma grande mancada do longa de Walter Carvalho e Sandra Werneck que Esmir Filho corrige com elegância e comoção.

A participação do próprio Ney Matogrosso ao final de Homem com H, bem como cenas de sua mais recente turnê, Bloco na Rua, poderia ser, em outros casos, o cacoete fácil de uma cinebiografia que deseja encontrar atalhos óbvios para chegar ao coração de seu público, quase como um fan service mesmo. Contudo, frente a um projeto que abraça com tanta honestidade e carinho um personagem revolucionário do cenário musical brasileiro, o efeito acaba sendo o posto: é lindo ver Ney, hoje com 83 anos, ainda erguendo nos palcos, sem qualquer sinal de que vá parar, bandeiras que foram sempre tão suas e que, ao fim e ao cabo, deveriam ser de todos nós.

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