“O Que Só Sabemos Juntos” (e com o teatro humanamente ímpar de Denise Fraga)

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Na sala de estar, um homem dança com a música em volume máximo. Sua mulher, prestes a entrar em uma call, pede para que ele diminua o som. Ofendido, o homem desliga a música e diz que está sendo privado de curtir o momento. Não é verdade. A mulher apenas pediu para que ele diminuísse o som, e não que ele o desligasse, mas é tarde demais, a discussão já começou. Entre tudo o que um diz ao outro a partir dali, descortinando silêncios, mágoas e frustrações, há um componente que, no final das contas, é a cura e a doença de qualquer relacionamento: a palavra, hoje tão mal usada, frequentemente tratada com descaso e, acima de tudo, pouco escutada.

E não é de hoje que Denise Fraga fala sobre polir palavras. Neste seu mais novo espetáculo chamado O Que Só Sabemos Juntos, em cartaz pelo Brasil desde o último mês de abril, ela, dividindo o palco com Tony Ramos, traz para o palco inquietudes do mundo moderno, a partir de uma proposta que ela diz ter assumido com ela própria: a de buscar textos e reflexões que lhe são caras e importantes do ponto de vista pessoal. Desde A Alma Boa de Setsuan (2008), passando por Galileu Galilei (2015), A Visita da Velha Senhora (2017) e Eu de Você (2020), a atriz se apropria de obras de autores como Bertold Brecht e Friedrich Dürrenmatt para, então, polir as palavras e entregá-las às plateias de formas que elas percebam como certas questões são atemporais e universais — e como a arte nos ajuda pelo menos a sofrer mais bonito e em comunhão.

O Que Só Sabemos Juntos é uma potencialização de Eu de Você, espetáculo em que Denise Fraga, a partir de cartas enviadas por pessoas desconhecidas, entrelaçava a vida comum com o teatro, a música e a literatura. Tinha Paulo Leminski, mas também Zezé di Camargo e Luciano. Ou, então, Beatles e Chico Buarque para, logo em seguida, apresentar a história de um menino rejeitado por sua homossexualidade. Lá, Denise já rompia a fronteira entre o popular e o erudito. E mais: apagava as linhas que separam o público sentado na plateia do ator que se apresenta no palco. Em muitos sentidos, O Que Só Sabemos Juntos bebe da fórmula de sucesso de Eu de Você: novamente sob a batuta do diretor Luiz Villaça e agora acompanhada da sensibilidade de Tony Ramos, Denise torna o espectador um personagem do espetáculo, mas sem jamais se repetir.

A escuta é o farol norteador do espetáculo. Antes mesmo de subirem ao palco, Denise e Tony transitam na plateia, recebendo o público e entrando em contato com suas histórias. Algumas delas, chegam ao palco, onde a dupla interpreta mil e um personagens. Ora são Denise Fraga e Tony Ramos mesmo, ora são um casal fictício. No próprio caráter autobiográfico do texto, eles se multiplicam: Tony, por vezes, não é o ator com 60 anos de carreira e cerca de 140 personagens na conta — ele é também, e talvez até mais, o Toninho de sua mãe, garoto que pedia dois cruzeiros para ver o Oscarito no cinema e que ia até a sessão saltitando com seus calçados na areia. E Denise se transforma na garotinha que andava de táxi com seu tio Fausto, a quem ela relembrava nas imagens de uma câmera Super 8 projetadas na sala de estar da casa de sua vó. Eles são muitos. E são todos nós.

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O grande crítico de cinema Roger Ebert uma vez que escreveu que existe um paradoxo em filmes que são tão pessoais – ao invés de serem específicos, eles são, na verdade, universais, pois muitas das emoções e angústias compartilhadas pela humanidade são as mesmas. O Que Só Sabemos Juntos segue essa mesma lógica e é construído a partir de um desejo genuíno de ser uma conversa, e não algo erudito, ininteligível ou distante. O texto, por sinal, foi todo construído na sala de ensaio, sem estrutura prévia, compilando questões que Denise, Tony, Villaça e demais membros da equipe consideravam urgentes para esses nossos tempos. Só não valia uma coisa: ser didático. Missão cumprida na medida em que o espetáculo fala até sobre questões ambientais sem parecer algum tipo de panfletagem — pelo contrário, até nos dar o prazer de ver Tony Ramos declamando palavras do clássico Tio Vânia, de Chekov.

Parte da afetividade de O Que Só Sabemos Juntos ainda está na maneira como a memória é reverenciada, sejam a dos personagens em cena ou a da própria plateia, e como o texto nos propõe a olhar para o futuro e para, como bem ilustra o subtítulo de Tio Vânia, deixar algo aos que vierem depois de nós. A exemplo de Eu de Você e de tantos outros papeis de Denise, o espetáculo caminha no terreno fértil entre o drama e a comédia. Se a tal discussão do casal sobre baixar a música começa cômica, é questão de pouco tempo para que ela nos faça refletir sobre as dinâmicas espinhosas de um relacionamento e sobre o tratamento desrespeitoso e violento da sociedade para com as mulheres. Ao meu ver, o melhor momento da história contada. Trata-se de um mérito estendido, claro, ao diretor Luiz Villaça, em seu trabalho mais maduro nos palcos ao comandar uma peça de difícil definição, no melhor sentido da palavra — e, neste caso, por isso mesmo, tão instigante e diferente do que estamos habituados a ver.

Como um fã assumido de Denise e Villaça, digo que O Que Só Sabemos Juntos só poderia ter sido feito por eles, e por mais ninguém. Se, durante o tempo em que esperei para conferir o espetáculo desde sua estreia, fiquei me perguntando como ele não seria apenas uma versão 2.0 de Eu de Você, hoje me pego surpreendido com o resultado, que é comovente e humano em seu cerne, mas também de um exercício cênico inquieto, ao estilo do próprio texto. O prazer de ver Denise e Tony dançando, cantando, correndo, divertindo e emocionando obviamente salta aos olhos (e não teria como ser diferente, já que ela, em certo ponto, até solta a voz em um momento musical delicioso ao som da clássica I Will Survive), mas, para a nossa alegria e emoção, eles são parte de algo muito maior, algo coletivo e agregador. Algo que só existe com a presença do outro. Inclusive de nós próprios na plateia.

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