
Um homem acorda cercado por uma multidão. Em polvorosa, homens e mulheres lhe fazem mil e uma acusações, exigindo diversos acertos de contas. Só que o tal homem, conhecido como Pedro Chão, não lembra de absolutamente nada. Está tão desnorteado quanto desmemoriado. Ao mesmo tempo em que busca juntar as peças de tudo o que aconteceu, ele tenta responder a esse tribunal formado em sua volta. E é basicamente sem preencher as lacunas de eventos passados que Filhos do Mangue narrará a história desse protagonista sem referencial, inclusive sobre ele próprio.
Afeita a interações com as comunidades que verdadeiramente habitam os locais em que seus filmes se passam, a diretora Eliane Caffé, do ótimo Narradores de Javé e de Era o Hotel Cambridge, volta a apostar nessa fórmula de experiências coletivas. Em Filhos do Mangue, ela chega ao Rio Grande do Norte mostrando os costumes de um povo ribeirinho, interpretado por um numeroso elenco de não-atores que dá vida a questões envolvendo não só sua natureza antropológica da região como também questões relacionadas a desvio de verba pública, exploração da prostituição e cenas de violência doméstica.
Como um longa-metragem coral, Filhos do Mangue é uma grata surpresa. A longa cena em que a comunidade confronta o homem desmemoriado já dá conta, logo no início do filme, de apresentar ao espectador as diferentes dinâmicas e personalidades dos personagens que vamos acompanhar ao longo da trama. E eles não poderiam ser mais humanos: concordam, brigam, alteram a voz, clamam por racionalidade e expõem uma série de temperamentos que, quando combinados, definem muito bem aquela vida coletiva.
Assim como nós, o protagonista vivido por Felipe Camargo vai (re)conhecendo cada um deles. Na verdade, a situação é muito mais complexa em seu caso, uma vez que, sem referências sobre si próprio, ele depende da palavra dos outros para tentar se decifrar. Sua confusão é palpável não só pelo excelente desemprenho de Camargo, mas também por uma circunstância que desafia valores — afinal, como ele pode ter tomado, em outra “vida”, as tantas decisões erradas e condenáveis que lhe contam e que ele não identifica como características de sua índole?
Sem se reconhecer no espelho, Pedro Chão convive com essa violência de verem outros desenhando sua própria pessoa e passa a viver às margens daquela comunidade, como se estivesse a cumprir uma penitência cotidiana que ele, no fundo, passa a compreender como justa. Filhos do Mangue, então, olha bastante para esse homem por meio de silêncios e atividades banais. É quando Felipe Camargo trabalha nas minúcias, pois a jornada interna de Pedro Chão acontece, em sua maioria, no não-dito.
Por vezes, o longa quer abraçar coisas demais, o que imprime irregularidades no número de temas discutidos e na profundidade dos personagens abordados. Contudo, se no roteiro escrito em parceria com Luis Alberto Abreu, Eliane Caffé resvala na concisão, o mesmo não pode ser dito de sua firme direção: tanto ela trata a comunidade ribeirinha sem maniqueísmo algum como fortalece a todo momento o trabalho coletivo em cena, extraindo ótimos momentos inclusive dos atores não-profissionais e consolidando o seu dom de transformar um grupo em uma voz uníssona.