Independent Spirit Awards 2024: a busca por pertencimento em “A Thousand and One” e “Monica”

Uma dobradinha muito interessante entre os indicados ao Independent Spirit Awards deste ano é encontrada em A Thousand and One e Monica. Ambos os filmes retratam personagens praticamente à deriva, em busca não apenas de (auto)conhecimento,  mas também de algum tipo de pertencimento, seja na família ou na própria sociedade. Os dois longas também se caracterizam por suas excelentes performances centrais, que dão vida a protagonistas resilientes e complexas. Tanto A Thousand and One quanto Monica ainda não tem estreia prevista no Brasil, como frequentemente acontece com a maioria dos filmes norte-americanos de natureza mais independente, mas vale conferi-los se surgir a oportunidade.

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A Thousand and One é o longa-metragem de estreia da diretora A.V. Rockwell, que, até então, só havia assinado três curtas desde 2013. O título faz referência ao apartamento em que Inez (Teyana Taylor) mora com seu filho na instável Nova York dos anos 1990, mais especificamente no Harlem. Ela é o que chamamos em inglês de unapologetic, ou seja, em linhas gerais, alguém que não se desculpa por ser quem é ou pelas atitudes que toma. Como um furacão, ela frequentemente oscila entre escolhas questionáveis e outras que reforçam a sua autenticidade, como quando se recusa a aceitar qualquer emprego apenas por necessidade.

O instinto rápido de Inez também molda o destino do filho, especialmente quando ela o retira do orfanato após sair da prisão, desafiando as autoridades e colocando-se novamente em situação ilegal. A Thousand and One é de partir o coração em diversas passagens porque, sim, nos apresenta uma protagonista errática, mas que, em grande parte, toma decisões fora da curva porque quer estar próxima ao filho e proporcionar a ele o que, em suas próprias palavras, ela nunca teve. É assim, por exemplo, que Inez perde a compostura a ponto de ameaçar despejar o filho de casa quando ele diz não ter interesse algum pela faculdade que lhe está sendo ofertada.

Começando nos anos 1990 e atravessando uma década para chegar aos 2000, A Thousand and One é o retrato de uma família negra nova-iorquina em seu sentido mais cotidiano. Não há nada de extraordinário nas experiências de Inez e do pequeno Terry, a não ser, claro, a vida como ela é. Inicialmente, o longa retrata a jornada de alguém em busca de salvar outra pessoa; mas logo revela-se como a história de alguém tentando encontrar sua própria salvação através do próximo. Ainda que seja possível tentar, não há como enfrentar verdadeiramente uma vida sem compartilhar nada.  E talvez seja essa a lição que a protagonista, interpretada com força e personalidade pela cantora Teyana Taylor, venha a aprender ao longo de seus tantos erros e, paradoxalmente, acertos.

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Lidar com as adversidades da solidão e da rejeição apenas por ser quem se é deve ser o maior fardo carregado por Monica (Trace Lysette), a protagonista-título deste novo filme do diretor italiano Andrea Pallaoro. Sua transexualidade, inclusive, foi o que a separou da família, até o momento em que recebe a notícia de que a mãe está com a saúde muito frágil e, possivelmente, com os dias contados. Monica parte desse arco clássico de retorno às origens, mas com a diferença fundamental de falar sobre passado, confronto e aceitação a partir da perspectiva de uma personagem transexual.

A partir do momento em que Eugenia (Patricia Clarkson), vítima de um tumor no cérebro que vem lhe tirando boa parte da memória, não reconhece a filha, Monica acaba assumindo o papel de cuidadora, como se fosse uma estranha que, aos poucos, a mãe acolhe em casa como parte de seu dia a dia. Há muitas feridas ainda não cicatrizadas entre elas, o que faz com que a protagonista assuma esse papel de modo a evitar novos e antigos conflitos diante do frágil estado de saúde que se apresenta diante dela. E a boa notícia é que não há nada de melodrama na forma como Monica se desenvolve.

Diretor afeito a estudo de personagens, como visto no difícil Hannah, estrelado por Charlotte Rampling em 2017, Andrea Pallaoro mais uma vez se debruça sobre uma protagonista com atenção absoluta e o mínimo de intervenção. O ritmo próprio e característico do diretor permite que a relação entre Monica e Eugene se desenvolva por meio das coisas mais banais do cotidiano — coisas que, quando acumuladas, ressignificam sentimentos e colocam importantes questões em perspectiva. Ou seja, nossa capacidade de observação faz toda diferença aqui, pois as transformações trabalhadas pelo filme não se dão através de diálogos expositivos ou grandes acontecimentos.

Trace Lysette é um espetáculo no papel principal, capturando as nuances de uma personagem difícil e, convenhamos, intimidante. Afinal, se Monica segue muitos dos passos de Hannah como estudo de personagem, como ser a nova protagonista de um diretor que, em seu filme anterior, conferiu essa missão a ninguém menos que Charlotte Rampling? Lysette não hesita em momento algum, entregando uma performance corajosa e que, em sintonia com um filme não-verbal, explora as dores e as belezas na busca por diferentes formas de se curar.

O roteiro escrito por Pallaoro, novamente em parceria com Orlando Tirado, pode ser, por vezes, reticente demais, o que nem sempre contribui para o ritmo e para o envolvimento com os personagens — em especial com a mãe, vivida pela sempre ótima Patricia Clarkson, que demora a ter uma presença realmente efetiva em cena. Não deixa de se configurar como um gosto adquirido; afinal, é necessário se identificar com esse tipo de tratamento para embarcar no filme. Para quem consegue, Monica reserva momentos sublimes, a exemplo da cena na banheira em que Lysette e Clarkson se olham e um mundo inteiro de sentimentos é comunicado, sem uma linha de diálogo sequer. É quando, enfim, imagens valem mais do que mil palavras.

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